Escassez geral nas catástrofes: cidadãos sufocados pelas prerrogativas da administração pública

AutorGeorghio Alessandro Tomelin
Páginas35-65
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ESCASSEZ GERAL NAS CATÁSTROFES:
CIDADÃOS SUFOCADOS PELAS
PRERROGATIVAS DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
GEORGHIO ALESSANDRO TOMELIN
1. INTRODUÇÃO
O direito administrativo deveria ser pandêmico: sempre. O vocá-
bulo pandemia tem origem no grego pan, panto, todo, e demos, povo. Por
detrás do termo pandemia está a ideia de “espalhar em todo o povo”, mas
o sentido se especializou para as moléstias contagiosas de amplo espectro.
O direito, de um modo geral, deveria tratar de modo uniforme e igual
todos os indivíduos, como se fosse uma “pandemia” de civilidade (o que
mais estamos precisando no momento político atual). Mais ainda o direi-
to administrativo, que é o instrumental que permite ao Estado gotejar suas
forças aqui ou ali, beneficiando uns ou prejudicando outros.
A história mostra que o único dispositivo legal que não deixou
brechas para deslizes do aplicador foi o art. 3º do “Code Pénal” francês
de 1791: “Tout condamné aura la tête tranchée” (“Todo condenado terá
a cabeça cortada”). Nada mais objetivo do que ter a cabeça decepada pelo
Estado: bem diferente de morrer de uma gripe por falta de respirador
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GEORGHIO ALESSANDRO TOMELIN
ou omissão de outro insumo ou procedimento para o tratamento (que
seria obrigação estatal por força de nosso regime de direito público). O
fato inegável é que o Estado Jurislador em que vivemos escamoteia seus
dispositivos, sempre que o destinatário seja um cidadão que mereça
proteção especial. Daí termos um regime sancionatório que nem sempre
traz a estabilidade que apregoa.
Mas o direito vive do discurso da estabilidade. Um discurso de
busca de segurança, que subjaz em tudo que normatiza. Tanto no direito
público quanto no privado, é do regime jurídico e dos atributos dos atos
que vamos extrair o substrato a ser medido em cada relação jurídica. Tal
mensuração depende da possiblidade de revisão apoiada na escrituração
das medidas tomadas (o que nem sempre ocorre). Em suma: estabilidade
e traçabilidade andam juntas. Ou bem temos o traçado do que se pro-
duziu e como foi expedida a providência jurídica, ou ficará muito difícil
questionar e controlar seu conteúdo.
A ideia de traço vem de tractus, particípio do verbo traho, que al-
berga a ideia de puxar. Daí por exemplo a noção de contrato, com o que
se conectam relações entre indivíduos. Para a correta traçabilidade de cada
relação jurídica temos que rastrear os elementos que a compõe. É da teo-
ria geral do direito que a validade do negócio jurídico exige sujeito capaz,
objeto lícito e forma prevista ou não proibida (consagrada hoje no art. 104
do CC/02 e antes no art. 82 do antigo CC/16). Quando estamos diante
de atos, contratos ou negócios da administração pública, o regime jurídi-
co e o traçado que levou a encetar uma relação são a garantia da possibi-
lidade de rever e responsabilizar, premiando ou penalizando quem agiu
bem ou mal. E é evidente que as situações de emergência irão condicio-
nar a leitura que se fará de cada providência administrativa, maiormente
quando tomada sob o influxo de uma grave premência.
É digno de nota que o direito público se reveste de um regime
de exorbitância que blinda seus atos. Um regime derrogatório do direito
privado. Derrogatório e não revogatório, como muitas vezes incorreta-
mente se refere. Temos um regime excepcional que vive ao lado das
normas de direito privado. Que existe à margem, mas que se socorre do
direito civil quando não encontra solução normativa em seu próprio

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