A Escola e a Atuação Protetiva dos Direitos dos Alunos-Vítimas

AutorJadir Cirqueira de Souza
Páginas119-216

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1 Síntese histórica da proteção dos direitos infantojuvenis

Após a análise da história e dos aspectos relacionados à educação, com natural ênfase na evolução constitucional, torna-se necessário analisar – inicialmente – os dados históricos relativos à proteção dos direitos das crianças e adolescentes e, em seguida, apresentar a hipotética rede de proteção integral, seus desafios, dilemas e conflitos, segundo o novo esquema determinado pelo ECA e a moderna e garantista visão fixada pela CF/88.1Segundo os estudos desenvolvidos por COSTA e MENDEZ, os avanços ainda são implementados lentamente na esfera legislativa, sendo que, apesar dos expressivos ganhos legais, os países encontram-se distantes de atingirem a plenitude da integral e prioritária proteção dos direitos da população infantojuvenil, particularmente na América Latina, embora o Brasil tenha assumido a dianteira pois já possui legislação de excelente qualidade.2

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O pedagogo Antônio Carlos Gomes da COSTA, na obra em coautoria com Emílio Garcia MENDEZ, conhecidos expoentes e precursores da doutrina mais abalizada cientificamente de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes elaboraram interessante evolução relativa ao atual sistema jurídico-social de proteção, tomando-se como marco inaugural o ano de 1900.3Reconhecem que a história da tentativa de proteção dos direitos infantojuvenis é mais antiga do que a própria existência do Brasil, sendo claro que, entre 1500 e o início de 1900, a ausência de políticas sociais de proteção da população mais jovem constituía a tônica das ações governamentais, ao passo que, diferentemente da omissão estatal, as redes protetivas das igrejas sempre foram mais efetivas e objetivas, desde os primeiros anos do Brasil.

Assim, a omissão protetivas dos pontos de vista legislativo e administrativos foi uma das marcas das ações e/ou omissões governamentais, principalmente no espaço rural, sabidamente, local onde se concentrava a mais carente população brasileira, antes do forte êxodo que marcou nos meados do séc. XX.

Nas áreas rurais e junto aos indígenas, ainda que melhores do que o governo português, pouco se importou com as crianças, as primeiras ações protetivas desenvolvidas pelos padres jesuítas que chegavam de Portugal tinham claro propósito de recrutar os soldados de Cristo, sendo um viés totalmente diverso dos atuais paradigmas legais e da educação no plano científico, segundo a síntese transcrita de RIZZINI e PILOTTI:

No período colonial, a assistência à infância no Brasil seguia determinações de Portugal, aplicadas por meio da burocracia, dos representantes da Corte e da Igreja Católica. Igreja e estado andavam juntos. O Evangelho, a espada e a cultura europeia andavam lado a lado no processo de colonização e catequização implantado no Brasil. Ao cuidar das crianças índias, os jesuítas visavam a tirá-las do paganismo e discipliná-las, inculcando-lhes normas e costumes cristãos, como o casamento monogâmico, a confissão dos pecados, o medo do inferno.4Observava-se que não existia legislação protetiva específica e ações governamentais próprias, exceto algumas medidas pontuais, e, ainda, sem a

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necessária validação científica, como, por exemplo, as Rodas dos Expostos, segundo as pioneiras pesquisas desenvolvidas por MARCÍLIO.5

As Santas Casas de Misericórdia recebiam os idosos, os inválidos e/ou doentes, os primeiros meninos de rua, numa visão essencialmente religiosa de proteção, a qual, efetivamente vigorou por muito tempo no Brasil, sendo, aliás, bastante forte na atual conjuntura, sobretudo junto às camadas mais pobres da população. Assim, por vários séculos, a defesa centrou-se na força da religiosidade das decisões.

É fato historicamente reconhecido que no século XVIII, especialmente no mundo ocidental, surgiram os primeiros movimentos pela defesa da cidadania frente aos Estados absolutistas, sendo exemplos já declinados no Capítulo inicial as revoluções francesa (1789) e norte-americana (1776), formatando-se o Estado de Direito em face do absolutismo de outrora, porém sem qualquer alusão à diferenciada necessidade de proteção da juventude, realmente distante dos debates políticos que romperam com o forte obscurantismo religioso dos períodos antecessores das revoluções, segundo MONDAINI.6Na verdade, constata-se que a primeira fase de proteção da juventude, anterior a 1900, além dos fortes aspectos religiosos dominantes, mesmo com as revoluções liberais, apresentava as características iniciais da tutela penal indiferenciada, em que os menores eram inclusos no sistema punitivo dos adultos, conforme vislumbra-se na evolução traçada por PRIORE.7A visão protetiva da inicial etapa de natureza criminal apenas concentrava-se na repressão penal juvenil, com os primeiros códigos criminais, e nas ações religiosas dos primeiros catequizadores que chegaram ao país.

Portanto, a juventude brasileira do começo do séc. XX, desde que fosse carente, abandonada, doente, ou era recebida nos conventos e/ou instituições religiosas, ou era objeto de ações penais, na visão de SPOSATO.8A despeito da evolução internacional do movimento constitucionalista, da fixação legislativa imposta ao Estado, observa-se que os direitos

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do homem, mesmo positivados a partir das revoluções liberais não eram cumpridos e, muitos menos ainda, em relação à juventude.

De outro lado, na qualidade de seres humanos, observava-se que os escravos, as mulheres, as crianças e as pessoas pobres não eram titulares de direitos civis, sociais e políticos.9, circunstâncias abolidas tão somente no plano legislativo formal.

Assim, paradoxalmente à adoção do paradigma do Estado de Direito, que garantia a titularidade de direitos e deveres na ordem jurídica nacional, embora o exercício já fosse mitigado e com diferentes concepções para pobres e ricos e/ou poderosos e não poderosos, constatava-se que crianças e adolescentes não eram sequer titulares de direitos, sendo tratados como objetos das ações religiosas e governamentais do período.

Pela releitura histórica do período imperial, é possível perceber que nos primeiros séculos de existência do Estado brasileiro não se detectou sequer a necessidade social de tratar os menores como sujeitos ou titulares de direitos. Ou seja, nas mesmas condições do regime de escravidão dominante da população negra, também inexistiam normas jurídicas que colocavam os menores na qualidade de titulares de direitos que deveriam ser protegidos pelo Estado, exceto em relação às regras criminais.

Ficou claro que, assim como os escravos, os menores eram tratados como simples mercadorias ou objetos. Uma circunstância, no entanto, diferenciava os dois grupos sociais: o forte e crescente movimento social pelo término da escravidão no Brasil, diferente das crianças que continuaram no limbo social da história.

Pode-se afirmar que, enquanto a escravidão terminou – pelo menos na letra da Lei Áurea – em 1888, a escravidão da infância e da juventude somente foi extinta em 1988. Aliás, se existe um século de diferença, historicamente, é fácil constatar que, apesar da lei, os problemas sofridos pela juventude brasileira na tentativa de ser titular de direitos, guardadas as diferenças, pode ser equiparada aos percalços vividos pelos negros após a abolição da escravatura.

Assim, segundo as lições de FAUSTO, relativas ao final da monarquia brasileira, e comparando-as com a doutrina garantista mais atualizada, resguardadas as diferenças de cada época, o mesmo movimento relativo ao

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término da escravidão que culminou com a Lei Áurea, de 1888, somente vai acontecer em relação às crianças e adolescentes, em 1988, portanto, um século depois, prova inequívoca do atraso protetivo10Após a criação do Juizado de Menores no Brasil, no ano de 192311, e a entrada em vigor do primeiro Código de Menores, conhecido como Código Mello Matos, em franca alusão a um dos seus idealizadores, inicia-se a proteção legislativa e institucional na perspectiva dos menores, embora as condições políticas fossem bastante difíceis pela ditadura implantada pelo Estado Novo da era Vargas que chegava ao ápice.12Em 1942, o governo federal criou o SAM – Serviço de Assistência ao Menor –, órgão público centralizador e diretamente ligado ao Ministério da Justiça, como forma de garantir a proteção dos menores abandonados, desvalidos e praticantes de crimes, sendo que a instituição federal acabou sucumbindo por conta dos vícios imanentes à estrutura administrativa centralizadora.

A visão de trabalho do órgão público era eminentemente correicional-repressiva. É que a proteção menorista não se coadunava com a visão dos paradigmas relativos aos direitos sociais, incorporados à CF/34, sendo que os menores ainda não eram titulares de direitos civis, políticos e sociais.

Enfim, ao lado das ações religiosas e das medidas filantrópicas que começavam a ganhar força, o órgão administrativo federal, em conjugação de esforços com os juizados de menores, possuía atuação marcadamente punitiva dos menores, embora os discursos fossem pseudoprotetivos, num autêntico eufemismo que perpassou toda a história de proteção da juventude, como se pode perceber no livro “Capitães da Areia”, de Jorge Amado.

Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1946, depois do segundo vexame institucional autoritário, os direitos sociais recobraram melhor proteção legislativa, em virtude do retorno da democracia, que foi interrompida pela...

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