Escorço Histórico

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Ocupação do AutorAdvogado. Juiz aposentado do TRT da 9.ª Região
Páginas47-59

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1. Comentário

O conceito do devido processo legal — como método ou técnica estatal de solução heterônoma dos conflitos inter-subjetivos de interesses ocorrentes entre os indivíduos — revela-se, fundamentalmente, unitário, incindível; quando adjetivamos de “civil” ou “trabalhista” determinado processo, não estamos, com isso, fazendo tábua rasa do princípio dogmático da unidade processual, se não que apenas realçando a natureza da lide a ser composta (lide civil, lide trabalhista) — ou, quando menos, a natureza da pretensão posta em juízo naqueles casos em que inexiste lide.

A despeito de o processo do trabalho possuir reconhecida autonomia teleológica e procedimental, as normas legais que o compõem são, numericamente, insuficientes para atender às necessidades ditadas pela vida prática; ciente dessa precariedade estrutural — e intuindo, com argúcia, as dificuldades e transtornos que, em razão disso, poderiam advir —, o próprio legislador trabalhista cuidou de permitir a adoção supletiva de normas do processo civil (CLT, art. 769), nada obstante tenha, no particular, perpetrado a manifesta impropriedade terminológica de atribuir a esses preceitos normativos forâneos a quali-dade de “fonte” (sic) desse processo especializado. No tocante à execução, em particular, por força do disposto no art. 889, da CLT, a incidência supletiva imediata não será do processo civil e sim da Lei n. 6.830/80, que dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública Federal. Somente se esta norma legal for omissa é que o intérprete estará autorizado a incursionar pelos sítios do processo civil para buscar o elemento supletório.

Se, de um lado, a penetração do processo civil no do trabalho motiva a advertência de que essa infiltração, quando realizada de maneira irrefietida, indiscriminada, tende a acarretar uma perigosa transubstanciação deste, com virtual risco de perda de sua identidade enciclopédica, de outro, serve para justificar o estudo da gênese histórica de alguns institutos do processo comum, que inspiraram, de uma forma ou de outra, a criação de símiles trabalhistas. Esse é, p. ex., o caso da execução de título judicial.

Se considerarmos a execução trabalhista em si mesma, veremos que ela é, praticamente, carecedora de lastro histórico, pois a sua origem formal é produto dos tempos contemporâneos; como derivante da execução do processo civil, contudo, as suas raízes remontam a vários séculos. Daí, o interesse e a importância que para este Capítulo representa uma incursão retrospectiva pelos ordenamentos jurídicos de alguns povos que, com maior intensidade, contribuíram para a elaboração do processo moderno e, em especial, para o desenvolvimento dos estudos respeitantes à execução judicial. É o que, a seguir, faremos.

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1.1. Direito Romano

A legislação vigorante na Roma antiga era extremamente rigorosa em relação à pessoa que deixasse de cumprir a obrigação assumida; ao contrário do que ocorre nos tempos atuais, porém, os credores romanos não podiam fazer com que a execução incidisse no patrimônio do devedor, pois as medidas previstas naquela legislação prisca tinham como destinatária, em regra, a pessoa do próprio devedor. A execução era, portanto, corporal e não patrimonial.

Examinemos, agora — embora a voo de pássaro miúdo —, algumas leis romanas que dispunham sobre o assunto de que estamos a nos ocupar.

  1. Pelo sistema da manus iniectio — já consagrado na Lei das XII Tábuas —, decorridos trinta dias da data do proferimento da sentença, facultava-se ao credor conduzir o devedor a juízo, valendo-se, se necessário, de medidas drásticas e violentas. Nesse caso o devedor tinha duas opções: pagar a dívida ou encontrar um terceiro (vindex) que o fizesse. Deixando a dívida de ser solvida (tanto num quanto noutro caso), o devedor era conduzido à casa do credor, onde era acorrentado, lá permanecendo em regime de prisão domiciliar. Cabia ao credor, depois disso, anunciar o valor da dívida em três feiras contínuas, de modo que permitisse que parentes do devedor ou mesmo terceiros a pagassem. Se nenhuma dessas situações se verificasse, afiorava uma das mais odientas medidas previstas pela legislação do período: o credor poderia matar o devedor, ou vendê-lo como escravo. Como nenhum romano podia perder a liberdade dentro dos limites da cidade, exigia-se que essa venda fosse feita em terras pertencentes aos etruscos, para além do rio Tibre.

    Na hipótese de serem muitos os credores, assegurava-se a estes o direito de esquartejar o devedor, cabendo a cada um parte do corpo da vítima. Alguns estudiosos, todavia, sustentam que esse hediondo direito dos credores nunca foi posto em prática, porquanto a estes convinha vender o devedor como escravo, dividindo o produto entre si, na proporção de seus créditos.

    Constata-se, portanto, que a manus iniectio concedia ao credor a faculdade de dispor sobre a vida do devedor, podendo matá-lo ou negociá-lo como escravo — práticas que chegam a provocar justificada repulsa pelos textos contemporâneos, em que a execução, respeitando a integridade física, a liberdade e a dignidade humana do devedor, tem como objetivo exclusivo o patrimônio deste (CPC, art. 789).

  2. É bem verdade que a Lex Poetelia (século V), rompendo com os meios execrandos e infamantes que caracterizavam a manus iniectio, tornou defesa a prisão do devedor, o seu agrilhoamento, bem como subtraiu do credor o nefando direito de tirar-lhe a vida ou de vendê-lo como escravo. Podemos ver na Lex Poetelia, em razão disso, um dos primeiros e mais expressivos marcos históricos a serviço do propósito de humanizar a execução, porquanto o devedor, perante a dívida assumida, já não respondia com o próprio corpo e sim com o conjunto de seus bens economicamente avaliáveis. Aliás, o cristianismo teve uma significativa infiuência no movimento que a doutrina

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    mais recente viria a denominar “humanização das execuções por dívida”, fazendo, justamente, com que os atos executivos incidissem no patrimônio e não no corpo do devedor.

  3. A execução patrimonial, no direito romano, aprimorou-se com a pignoris capio, pois aqui o credor poderia apreender bens do devedor, desde que o fizesse na presença de três testemunhas, sendo desnecessário o comparecimento do magistrado e do devedor. Era, portanto, uma apreensão extrajudicial. Essa penhora tinha apenas efeito intimidatório do devedor, pois não era permitido ao credor vender os bens de que se apossara por esse modo — conquanto pudesse, curiosamente, destruí-los. É razoável pensar que a destruição dos bens apreendidos tenha sido pouco utilizada, na medida em que esse ato não traria nenhuma utilidade ao credor, a quem interessava, isto sim, persuadir o devedor a cumprir a obrigação, após o que os bens lhe eram restituídos.

  4. O escopo de humanizar a execução continuou a ser perseguido pelas legislações romanas. Embora pela actio iudicati ainda fosse possível a execução em caráter pessoal, os credores preferiam promover a execução patrimonial, uma vez que esta melhor atendia às suas conveniências. A actio iudicati constituía uma nova ação, sendo indispensável para a execução da sentença que impusesse o pagamento de certa quantia. No geral, ela obtinha do devedor um reconhecimento quanto ao valor que lhe era cobrado; esse reconhecimento tinha o efeito prático de evitar que o devedor viesse a ser condenado a pagar a dívida em dobro, além de possibilitar que o magistrado autorizasse o cometimento dos atos executivos.

    Nota peculiar dessa execução é que ela poderia agir sobre a integralidade do patrimônio do devedor e não apenas sobre aqueles que bastassem à satisfação do crédito.

  5. Na bonorum venditio — também designada rutiliana, em homenagem ao pretor Rutílio Rufo —, vigente no séc. VII de Roma, efetuava-se a arrecadação de todos os bens do devedor, que eram administrados pelo curator bonorum, cuja indicação incumbia aos credores. Posteriormente, esses bens eram alienados em hasta pública, pelo magister, que também era escolhido pelos credores, segundo os procedimentos para isso estabelecidos. Singularidade dessa venda é que ao comprador dos bens se reputava sucessor universal do vendedor; demais disso, o comprador adquiria apenas a propriedade pretoriana dos bens levados a hasta pública, pois a propriedade civil era obtenível pela usucapião.

  6. Variante da bonorum venditio foi a distractio bonorum, praticada já no período imperial. A sua diferença, no que respeita ao sistema anterior, estava em que a penhora compreendia somente os bens necessários para satisfazer o valor da obrigação. Exigia-se também a anuência de todos os credores, sendo nomeado um curator bonorum para administrar os bens. A distractio apenas era admissível se o devedor pertencesse a certas classes elevadas, como a senatorial.

  7. Ainda nos primórdios do Império Romano, vamos encontrar outra modalidade de execução — a bonorum cessio —, na qual o devedor, de maneira espontânea, entregava a totalidade de seus bens aos credores; caso o produto da venda não fosse

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    suficiente para solver a dívida, a sua obrigação subsistia quanto ao valor remanescente. Mais tarde, na vigência do Código Teodosiano, a bonorum cessio tornou-se permitida apenas aos devedores que, sem culpa, caíssem em insolvência.

  8. As espécies de execução até este ponto examinadas tinham caráter privado, pois os atos que as compunham eram, quase sempre, extrajudiciais. O processo extraordinário, contudo, assinala o fim do período clássico do direito romano, e com ele surge a execução com traços de característico procedimento jurisdicional, pois ela se desenvolvia sem a intervenção pessoal dos credores. Basta ver que o ato de apreensão dos bens não era realizado pelo credor e sim pelos apparitores, espécie embrionária dos atuais oficiais de justiça...

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