Escorço histórico

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas24-40
24 Manoel Antonio Teixeira Filho
Capítulo III
Escorço histórico
O conceito do devido processo legal — como método ou técnica estatal de
solução heterônoma dos conitos intersubjetivos de interesses ocorrentes entre
os indivíduos — revela-se, fundamentalmente, unitário, incindível; quando
adjetivamos de “civil” ou “trabalhista” determinado processo, não estamos, com
isso, fazendo tábua rasa do princípio dogmático da unidade processual, se não
que apenas realçando a natureza da lide a ser composta (lide civil, lide traba-
lhista) — ou, quando menos, a natureza da pretensão posta em juízo naqueles
casos em que inexiste lide.
A despeito de o processo do trabalho possuir reconhecida autonomia teleo-
lógica e procedimental, as normas legais que o compõem são, numericamente,
insucientes para atender às necessidades ditadas pela vida prática; ciente dessa
precariedade estrutural — e intuindo, com argúcia, as diculdades e transtornos
que, em razão disso, poderiam advir —, o próprio legislador trabalhista cuidou
de permitir a adoção supletiva de normas do processo civil (CLT, art. 769), nada
obstante tenha, no particular, perpetrado a manifesta impropriedade termino-
lógica de atribuir a esses preceitos normativos forâneos a qualidade de “fonte”
(sic) desse processo especializado. No tocante à execução, em particular, por
força do disposto no art. 889, da CLT, a incidência supletiva imediata não será do
processo civil e sim da Lei n. 6.830/80, que dispõe sobre a cobrança judicial da
dívida ativa da Fazenda Pública Federal. Somente se esta norma legal for omissa
é que o intérprete estará autorizado a incursionar pelos sítios do processo civil
para buscar o elemento supletório.
Se, de um lado, a penetração do processo civil no do trabalho motiva a
advertência de que essa inltração, quando realizada de maneira irreetida,
indiscriminada, tende a acarretar uma perigosa transubstanciação deste, com
virtual risco de perda de sua identidade enciclopédica, de outro, serve para
justicar o estudo da gênese histórica de alguns institutos do processo comum,
que inspiraram, de uma forma ou de outra, a criação de símiles trabalhistas. Esse
é, p. ex., o caso da execução de título judicial.
Se considerarmos a execução trabalhista em si mesma, veremos que ela é,
praticamente, carecedora de lastro histórico, pois a sua origem formal é produto
dos tempos contemporâneos; como derivante da execução do processo civil,
contudo, as suas raízes remontam a vários séculos. Daí, o interesse e a impor-
tância que para este Capítulo representa uma incursão retrospectivo pelos
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ordenamentos jurídicos de alguns povos que, com maior intensidade, contribuí-
ram para a elaboração do processo moderno e, em especial, para o desenvolvi-
mento dos estudos respeitantes à execução judicial. É o que, a seguir, faremos.
1. Direito Romano
A legislação vigorante na Roma antiga era extremamente rigorosa em rela-
ção à pessoa que deixasse de cumprir a obrigação assumida; ao contrário do que
ocorre nos tempos atuais, porém, os credores romanos não podiam fazer com
que a execução incidisse no patrimônio do devedor, pois as medidas previs-
tas naquela legislação prisca tinham como destinatária, em regra, a pessoa do
próprio devedor. A execução era, portanto, corporal e não patrimonial.
Examinemos, agora — embora a voo de pássaro miúdo —, algumas leis
romanas que dispunham sobre o assunto de que estamos a nos ocupar.
1.1. Pelo sistema da manus iniectio — já consagrado na Lei das XII Tábuas
—, decorridos trinta dias da data do proferimento da sentença, facultava-se ao
credor conduzir o devedor a juízo, valendo-se, se necessário, de medidas drás-
ticas e violentas. Nesse caso, o devedor tinha duas opções: pagar a dívida ou
encontrar um terceiro (vindex) que o zesse. Deixando a dívida de ser solvida
(tanto num quanto noutro caso), o devedor era conduzido à casa do credor,
onde era acorrentado, lá permanecendo em regime de prisão domiciliar. Cabia
ao credor, depois disso, anunciar o valor da dívida em três feiras contínuas, de
modo que permitisse que parentes do devedor ou mesmo terceiros a pagassem.
Se nenhuma dessas situações se vericasse, aorava uma das mais odientas
medidas previstas pela legislação do período: o credor poderia matar o deve-
dor, ou vendê-lo como escravo. Como nenhum romano podia perder a liber-
dade dentro dos limites da cidade, exigia-se que essa venda fosse feita em terras
pertencentes aos etruscos, para além do rio Tibre.
Na hipótese de serem muitos os credores, assegurava-se a estes o direito
de esquartejar o devedor, cabendo a cada um parte do corpo da vítima. Alguns
estudiosos, todavia, sustentam que esse hediondo direito dos credores nunca foi
posto em prática, porquanto a estes convinha vender o devedor como escravo,
dividindo o produto entre si, na proporção de seus créditos.
Constata-se, portanto, que a manus iniectio concedia ao credor a faculdade
de dispor sobre a vida do devedor, podendo matá-lo ou negociá-lo como escravo
— práticas que chegam a provocar justicada repulsa pelos textos contempo-
râneos, em que a execução, respeitando a integridade física, a liberdade e a
dignidade humana do devedor, tem como objetivo exclusivo o patrimônio deste
(CPC, art. 789).
1.2. É bem verdade que a Lex Poetelia (séc. V), rompendo com os meios
execrandos e infamantes que caracterizavam a manus iniectio, tornou defesa a

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