Escravização de Refugiados e Migrantes no Sul da Itália: liberdade restringida pela miséria econômica e sofrimento social

AutorLuciana Paula Conforti
Páginas120-129

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Luciana Paula Conforti *

Introdução

A crise de refugiados e imigrantes na Europa tem sido tema frequente na imprensa nacional e internacional. Em 2015, o naufrágio de embarcação no Mediterrâneo deixou 800 mortos, incluindo mulheres e crianças.2

Segundo a União Europeia para Controle de Fronteiras, em 2016, a Itália recebeu número recorde de imigrantes, com o crescimento de 20%, totalizando 181 mil pessoas.3 O país é uma das principais vias de entrada para a Europa de imigrantes vindos do Norte da África e do Oriente Médio e, nos últimos anos, tem sofrido intenso fluxo de estrangeiros traficados, o que motivou apelos à União Europeia para adoção de medidas de responsabilidade compartilhada.4

A União Europeia anunciou um pacote de medidas para tentar conter o tráfico ilegal e a crise da imigração, incluindo reforço no policiamento das fronteiras; tratamento conjunto dos pedidos de asilo; unificação e compartilhamento do banco de dados com a identificação dos imigrantes; oferta de viagem de retorno; maior integração entre os escritórios de imigração dos países mais afetados; e um projeto piloto, de adesão voluntária, para a reinstalação dos estrangeiros.5

Devido ao intenso fluxo de pessoas em escala global, em setembro de 2016, foi realizada a primeira reunião para a discussão de formas de proteção aos direitos de refugiados e migrantes, na Assembleia Geral das Nações Unidas, com a divulgação da Declaração de Nova York. Os compromissos assumidos objetiva-

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ram a responsabilização conjunta e a adoção de um pacto global para migração segura, ordenada e regular em 2018, com a criação de oportunidades para que os refugiados possam ser recolocados em outros países.6

Como aponta Hugo Melo, em que pesem as promessas e o entusiasmo que marcaram cada etapa da União Europeia, ao longo de mais de 60 anos desde que o processo teve início, a esperada alavancagem da Europa não ocorreu, seja no tocante ao crescimento ou à competitividade e, principalmente, quanto à elevação das condições de vida dos cidadãos, o que cedeu espaço a incertezas e, mais recentemente, à desilusão.

A Itália é uma das quatro maiores nações da Europa Ocidental, teve crescimento negativo entre 2005 e 2014, vem suportando enormes déficits orçamentários e em sua balança comercial apresentou aumento da dívida e taxas de desemprego maiores que na Europa, circunstância ainda mais agravada no sul italiano, devido à maciça chegada de imigrantes.7

O artigo trata da escravização de refugiados e migrantes no sul da Itália, apontando para a restrição da liberdade de tais cidadãos em sentido amplo, devido à miséria econômica, desproteção social e inércia estatal na adoção de medidas efetivas para a proteção da dignidade dos trabalhadores. Após a morte de trabalhadores por exaustão nas lavouras italianas, em 2016, o país alterou a legislação penal, a fim de punir os exploradores e intermediários, o que pode trazer esperança de transformação de tal quadro de indiferença e desumanidade.

Precarização do trabalho na itália e lavoro nero

A máfia italiana é responsável pelo tráfico de pessoas e pelo controle do trabalho nas lavouras do sul da Itália, com imenso lucro. Segundo o relatório Agricoltura e lavoro migrante in Puglia, elaborado pela Federazione Lavoratori Agroindustria (FLAI) e pela Confederazione Generale Italiana de Lavoro (CGIL), a colheita de tomate em Puglia é um negócio que rende entre 21 e 30 milhões de euros por ano, fruto da escravização de quase 50 mil trabalhadores que vivem em condições análogas à escravidão, em 55 guetos espalhados pela região.8

Não é só em Puglia que o lavoro nero – considerado como aquele executado com violação da lei que o regula – é verificado, mas na Calábria, na Campânia, na Sicília, etc., com estimativas de que é responsável pela evasão de bilhões de euros em taxas e contribuições aos cofres públicos. Tal tipo de trabalho não envolve apenas estrangeiros, mas todos aqueles que necessitam complementar a renda para sobreviver com uma segunda ocupação; os aposentados e os desempregados.9

Em meio à abertura dos mercados, as empresas europeias, dentre elas as italianas, passaram a sofrer os efeitos da concorrência e das exigências do mercado comum, inclusive o fenômeno da transferência das fábricas para países com menor custo da mão de obra e a adoção de trabalho autônomo e de outras formas de trabalho precarizado.

Devido à crise financeira mundial, a quebra do banco Lehman Brothers, com sede nos Estados Unidos, considerado um dos maiores bancos de investimentos mundial, em 2008, agravou os problemas financeiros de vários países e na União Europeia. A crise fez com que os países investissem em setores estratégicos, o que aprofundou o déficit orçamentário que já apresentavam e exigiu a adoção de medidas de austeridade, quando a desregulamentação do trabalho passou a ser defendida com maior ênfase.10

A ideia da flexisegurança passou a fazer parte dos debates entre todos os Ministros do Emprego dos países que integravam a União Europeia e pretendia conciliar o inconciliável: a flexibilidade do mercado de trabalho e a segurança dos trabalhadores contra o desemprego, que amargava o número de 16 milhões de trabalhadores europeus em 2007.11

Como explica Amelia Torrice, o problema foi abordado pela Comissão Europeia no Livro Verde sobre a modernização do trabalho de 2006, para o abandono de tutelas rígidas nas relações de trabalho, mas com promessas de garantias de formação continuada, em sistema de parceria público-privada, a fim de forjar su-

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posta capacidade profissional, apta a atender imediatamente a demanda de trabalho proveniente das empresas e com aumento das prestações previdenciárias para o caso da perda do emprego. Com o agravamento da crise, em março de 2010, a Comissão Europeia propôs diversas medidas para a retomada da economia.12

Na Itália, assim como em outros países comunitários, houve o efetivo rompimento do discurso da manutenção de flexibilidade com seguridade, com inúmeras alterações legislativas precarizantes das relações de trabalho, até a consolidação da reforma trabalhista com o Jobs Act, implementada pelo Decreto Legislativo n. 81, de 15 de junho de 2015.

Giancarlo Erasmo Saccoman compara o Jobs Act ao retorno do trabalho “escravo”, face ao arbítrio do patronato nas rescisões contratuais, o que antes era bastante limitado pelo art. 18 do Estatuto dos Trabalhadores (Lei n. 300, de 20 de maio de 1970).13

Saccoman lembrou o protesto feito por mais de um milhão de trabalhadores em 201414, organizado pela Confederação Geral Italiana do Trabalho, na Praça San Giovanni, em Roma, em face da reforma trabalhista proposta pelo Primeiro-Ministro, Matteo Renzi.

Como explicou o trabalhador Massimo Lettieri, com referência ao Estatuto dos Trabalhadores: “Durante mais de 40 anos, o art. 18 encarnou a essência da dignidade dos trabalhadores diante do poder dos patrões, protegendo-os contra as demissões sem justa causa e resguardando seus direitos, de serem indenizados e recolocados imediatamente em seus postos de trabalho”15

A propaganda do governo era a de que reforma trabalhista tornaria o país mais atrativo aos investidores, aqueceria a economia e resultaria na criação de mais empregos. Apesar disso, segundo o Instituto de Estatísticas Italiano – ISTAT, o desemprego na Itália cresceu e chegou a 11,9% em 2016, afetando, especialmente, mulheres, jovens e pessoas com mais de 50 anos.16

Como destacado com propriedade por Roberto Mania, não é a reforma do mercado de trabalho que cria ocupações. A Itália demonstra isso, com crescimento das taxas de ocupação sempre inferiores às da Europa. Houve profunda divisão no país, desequilíbrio entre os trabalhadores com contratos de trabalho por tempo determinado, pela ausência de garantias e indeterminado, com maior proteção. A precarização foi formalizada, mas os precarizados não foram protegidos, como prometido.17

Luciano Gallino apresentou estudo sobre o custo humano e social da flexibilização do trabalho. Na introdução, afirma que apesar dos resultados negativos, economistas, juristas, políticos, empresários e associações industriais continuam sustentando a necessi-dade, urgente, de adoção na Itália, de uma maior flexibilização do trabalho, para possibilitar, em tempos de globalização, competição com outros países avançados e que, assim, há interesse geral da coletividade no aumento dos postos de trabalho flexíveis.

Ocorre que, segundo Gallino demonstrou, não só o trabalho tornou-se precarizado, mas a própria vida do cidadão, o que reflete diretamente na família, na comunidade e na sociedade como um todo. O trabalhador não tem perspectiva de vida, a partir do momento em que não sabe quando e que tipo de trabalho terá em poucos meses. Os contratos são de curta duração e dependem do mercado. Assim, não há como se fazer um projeto de vida de longo prazo, mas dependendo do lugar, de quanto o trabalhador estará ganhando e por quanto tempo. As famílias empobreceram, o que impôs o trabalho a todos para a garantia do sustento comum. Os jovens não conseguem boa formação e, com o passar dos anos, entrarão nas fileiras dos trabalhadores sem ocupação. A insegurança torna os trabalhadores amedrontados, permitindo maior exploração. Todo o contexto delineado afronta diretamente a maior parte das tutelas da Organização Internacional do Trabalho, voltadas ao trabalho decente ou digno18, o que prova ser uma falácia o alardeado interesse da coletividade.

O lavoro nero ou sommerso, teve crescimento acelerado com os grandes fenômenos migratórios, sobretudo os de forma clandestina. Convenientemente

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tolerado, aceito e estimulado por interesses particulares, segundo...

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