Escritos médico-psicopedagógicos sobre a criança: os projetos de caderneta individual no século XX

AutorSamuel Boussion
Páginas13-38
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2020.e79142
1313 – 38
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Escritos médico-psicopedagógicos
sobre a criança: os projetos de
caderneta individual no século XX
Samuel Boussion1
Resumo
Este artigo discorre sobre os projetos de cadernetas médico-pedagógicas individuais para as crian-
ças e sobre a sua evolução. Ao longo do século XX, podem-se identicar múltiplas tentativas de
instituir-se uma caderneta que, seguindo o modelo da caderneta de saúde, também levaria em conta
os dados psicológicos e pedagógicos. Elas se situam inicialmente numa perspectiva de higiene es-
colar, mas se espraiam também para o campo da prolaxia, com o objetivo de identicar as crianças
“anormais”, e, um pouco mais tarde, para o campo da orientação prossional. A Segunda Guerra
Mundial produz também uma abordagem diferente, em termos de racionalização dos escritos médi-
cos e psicológicos sobre a criança, buscando considerar os eventos sociais e o que eles possam ter
gerado na criança, sem, no entanto, distanciar-se das antigas categorias ligadas ao biológico. Muito
provavelmente as novidades encontram-se antes no fato de que se pretende conar às crianças a
caderneta médico-pedagógica, mas esses parênteses serão logo cerrados e nalmente se apagam
ante as críticas do que se considera como uma forma de controle social.
Palavras-chave: História. Médico-pedagógico. Ppsicologia. Psiquiatria da criança. Caderneta
de saúde.
1 Introdução
Num momento em que nos questionamos sobre as consequências psi-
cológicas de várias semanas de isolamento social, e que se elaboram meios
para a testagem e o monitoramento, é consenso que a saúde das crianças
1 Doutor em Historia. CIRCEFT axe HEDUC, Universidade Paris 8 Saint-Denis.
Escritos médico-psicopedagógicos sobre a criança: os projetos de caderneta individual no século XX | Samuel Boussion
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não pode ser entendida apenas no plano somático, mas também no psí-
quico. Nisso não há muita novidade. O que há de novo na verdade são os
projetos de inscrição desse dado nos documentos de saúde das crianças.
Na França, pouco antes da crise na saúde pública, um relatório já previa
acrescentar à caderneta de saúde mantida pelas famílias e pelo seu mé-
dico a noção de “saúde cultural”2. A psicanalista Sophie Marinopoulos
justica-a como “a saúde das nossas relações”; nesse sentido, lamenta que
a caderneta de saúde atual, e mais amplamente os discursos e práticas
médicas, tenderiam a reduzir a saúde da criança às suas características
siológicas, negligenciando a dimensão global do seu desenvolvimento,
particularmente o despertar artístico e cultural cuja carência comprome-
teria a psique3. Essa atenção sobre o acompanhamento da saúde psíquica
das crianças não é inédita na pena dessa especialista, já que ela publicara
Mon carnet de santé psy, obra dirigida aos pais que, seguindo o modelo
da caderneta de saúde, tem como objetivo monitorar a saúde psíquica da
criança (MARINOPOULOS, 2012).
Essas preocupações tanto com a saúde quanto com o registro escrito,
tão da nossa época, apostando no desenvolvimento pluridimensional da
criança e no investimento das famílias, parecem, não obstante, e olhando
bem de perto, inscrever-se numa história da medicalização e da psicolo-
gização da infância. Há, de fato, toda uma historicidade das práticas de
escrita sobre a saúde das crianças que, ao longo de todo o século XX, bus-
caram registrar elmente não somente os ensinamentos médicos mas tam-
bém os pers psicológicos e, por vezes, buscaram conar esses documentos
às famílias ou aos próprios menores, a partir do princípio da caderneta
de saúde das crianças. Isso nos veio à luz ao cabo de uma pesquisa sobre
uma organização internacional dedicada à causa das crianças, realizada na
Suíça no nal do ano de 1994, denominada “Semanas Internacionais de
Estudo para a Infância Vítima da Guerra”, cujo nome é amiúde reduzi-
do ao seu acrônimo: SE`PEG (BOUSSION, 2013). Dos seus arquivos,
dentre atas, relatórios e correspondência, emergiu um objeto singular: a
2 Émancipation par la culture, relatório entregue ao primeiro-ministro em 17 de fevereiro de 2020 por Aurore
Bergé.
3 “Hoje em dia, a falta de despertar cultural e artístico nas nossas crianças é um agelo da saúde pública”,
entrevista com Sophie Marinopoulos, por: Vergely, J. Télérama, 23 jun. 2019.

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