Há espaço para se ampliar a proteção social trabalhista eficiente do trabalhador em plataforma?

AutorZeno Simm
Páginas191-211
HÁ ESPAÇO PARA SE AMPLIAR A PROTEÇÃO SOCIAL TRABALHISTA
EFICIENTE DO TRABALHADOR EM PLATAFORMA?
Zeno Simm
Advogado. Professor. Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba. Doutor em Direito
pela Universidad de Castilla-La Mancha. Titular da cadeira n. 30 da ABDSS.
É mediante o trabalho que o homem deve procurar-se o pão cotidiano e contribuir para o progresso
contínuo das ciências e da técnica, e sobretudo para a incessante elevação cultural e moral da socie-
dade, na qual vive em comunidade com os próprios irmãos.
João Paulo II, Laborem exercens
1. INTRODUÇÃO
São incontáveis, profundas, perceptíveis e, de modo geral, irreversíveis as mudanças que o mundo vem
experimentando em todos os aspectos da vida humana, inclusive no âmbito do trabalho. A economia, a vida
familiar, os costumes, as comunicações, a intimidade e a privacidade sob vigilância, a economia, a educação,
a produção agrícola e industrial, enfim, em todos os campos constata-se que o mundo, embora sempre
estivesse em transformação, nunca passou por câmbios tão rápidos e profundos como atualmente, muitos
deles impulsionados pela informática e pelas crescentes e incessantes inovações tecnológicas. Expressões
e criações como inteligência artificial, internet das coisas (internet of things, IoT), drones, robôs, máquinas e
televisores inteligentes, carros sem motorista, impressão em 3D, hiperconectividade e armazenamento de
dados em nuvem, tecnologia M2M (machine-to-machine), cidades e edifícios inteligentes e comandados à
distância e tantas outras, chegam a ser assustadoras.
Também o trabalho humano sofre — às vezes com muita intensidade — a influência de todas essas
transformações, desde a Revolução Industrial do século XVIII até a agora chamada Quarta Revolução Industrial
(ou Indústria 4.0 ou também Trabalho 4.0), são tempos de Sociedade da Informação ou do Conhecimento
e Sociedade 4.0. Temos que nos habituar a ouvir e compreender expressões como crowdwork (trabalho de
multidão), co-working (compartilhamento de espaço de trabalho), gig economy (economia gig, trabalhos
esporádicos ou “um sistema econômico em que muitos períodos curtos de trabalho estão disponíveis, em
vez de empregos permanentes”(1)), soft skills (habilidades leves), on-demand e sharing economy (economia
por demanda e compartilhada), economia peer-to-peer (ou p2p, “uma arquitetura de redes de computadores
onde cada um dos pontos ou nós da rede funciona tanto como cliente quanto como servidor, permitindo
(1) “An economic system in which many short periods of work are available rather than permanent jobs.” (Oxford English Dictionary. Disponível
em: <https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/us/definition/english/gig-economy?q=gig+economy>. Acesso em: 23 jan. 2020.)
(tradução livre)
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Desafios ao Direito do Trabalho
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compartilhamentos de serviços e dados sem a necessidade de um servidor central.”(2)), micro ou small
tasks (pequenas tarefas executadas por click-work ou trabalho de digitação), telecommuting, home office,
teleworking, flexible workplace (todas se referindo a trabalho a distância, longe da empresa, em casa ou em
qualquer lugar) e muitas outras, a maioria ainda sem tradução para outros idiomas. Já estamos habituados
a usar, no dia a dia, equipamentos, ferramentas e aplicativos (hardwares e softwares) como iPhone, tablet,
laptop, WhatsApp, Facebook, Google, Instagram, e-mail, e muitos outros recursos do gênero a exigir-nos
cada vez mais a chamada inclusão digital, inclusive para fazermos variadas transações com empresas e até
agências bancárias virtuais. Ian Bogost diz mesmo que nós já vivemos dentro de um computador, citando
toda a parafernália eletrônica presente em nosso cotidiano, desde smartphones e televisores até fechaduras,
espremedores de frutas e utensílios domésticos acionados a distância, casas inteligentes e tudo o mais.(3)
De seu lado, Benzell, Kotlikoff, LaGarda e Sachs dizem que os robôs somos nós e que é difícil pensar em
tarefas até agora humanas que as máquinas inteligentes (nossas criaturas) já não podem fazer ou em breve
poderão, graças à inteligência artificial.(4)
É preciso, então, analisar de que forma todas essas inovações tecnológicas estão afetando o mundo
do trabalho, se são benéficas ou não e em que medida, se a pessoa humana do trabalhador está sendo
respeitada, se o Direito posto regula adequadamente as relações de trabalho ou se de lege ferenda há que
se melhorar a proteção social do trabalhador e como ele se situa no mundo jurídico. Trata-se de análise
complexa, seja em razão da diversidade de modalidades pelas quais o trabalho é exercido, seja porque os
posicionamentos doutrinários, legais e jurisprudenciais ainda se debatem entre o velho e o novo, entre
o tradicional e o arrojado, seja ainda em razão das divergências ideológicas e, embora o fenômeno seja
mundial, cada país regula (ou ainda não regula) a matéria segundo a sua própria ordem jurídica.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. AS VÁRIAS FORMAS DO TRABALHO HUMANO E SUA RECENTE TRANSFORMAÇÃO
Desde o início dos tempos o homem executa algum tipo de trabalho, tanto para si mesmo quanto para
terceiros, neste caso sob as mais variadas formas, do trabalho escravo à servidão de gleba, do artesanato
às corporações de ofício e depois como assalariado, vendendo seu tempo e sua energia em troca de uma
remuneração. Tradicionalmente, dividiu-se a atividade remunerada em dois grandes grupos básicos: o
trabalho por conta alheia ou subordinado, assalariado, e o trabalho por conta própria ou autônomo, cada
qual com uma regulamentação jurídica própria, distintas uma da outra, ainda que com algumas subdivisões
peculiares. Grosso modo, no âmbito privado o trabalho por conta alheia vem sendo regulado pelo Direito do
Trabalho e o trabalho autônomo por regras do Direito Civil. Resta saber se essa dicotomia ou macrodivisão
do trabalho humano prevalece ainda hoje ou se as várias formas de prestação laboral da atualidade vão-
-se interpenetrando e tornando cada vez mais tênues os seus limites, em que categoria se pode incluir
o trabalho por meio de plataformas digitais e como ele repercute na vida do trabalhador do século XXI.
Como diz Sánchez-Castañeda, “são novas formas de emprego(5) que utilizam as novas tecnologias,
evitando qualquer tipo de responsabilidade jurídica ou social, ao não existir contrato de trabalho,
(2) PEER-TO-PEER. Wikipedia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Peer-to-peer>. Acesso em: 23 jan. 2020.
(3) BOGOST, Ian. You Are Already Living Inside a Computer. 14 set. 2017. Disponível em: <https://www.theatlantic.com/technology/archive/
2017/09/you-are-already-living-inside-a-computer/539193/>. Acesso em: 13 jan. 2020. [s.p.].
(4) BENZELL, Seth Gordon et al. Robots are us: some economics of human replacement. 2018. Disponível em: <http://www.nber.org/papers/
w20941/>. Acesso em: 13 jan. 2020.
(5) Questionável, a meu ver, essa qualificação dada pelo autor, talvez fosse melhor dizer “trabalho” (gênero) e não “emprego” (espécie).
Essa distinção faz lembrar que o livro de Jeremy Rifkin, The end of work, foi traduzido (mais corretamente) no Brasil como O fim do emprego.

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