Princípios especiais do Direito Coletivo do Trabalho

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas123-148

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I Introdução

O direito do Trabalho, conforme já exposto, engloba dois segmentos, um individual e um coletivo, cada um deles contando com regras, institutos e princípios próprios.

Conforme visto, toda a estrutura normativa do direito individual do Trabalho constrói-se a partir da constatação fática da diferenciação social, econômica e política básica entre os dois sujeitos da relação jurídica central desse ramo jurídico específico — a relação de emprego.

De fato, em tal relação o sujeito empregador age naturalmente como um ser coletivo, isto é, um agente socioeconômico e político cujas ações, ainda que intraempresariais, têm a natural aptidão de produzir impacto na comuni-dade mais ampla. em contrapartida, no outro polo da relação inscreve-se um ser individual, consubstanciado no trabalhador que, enquanto sujeito desse vínculo sociojurídico, não é capaz, isoladamente, de produzir, como regra, ações de impacto comunitário. essa disparidade de posições na realidade concreta fez despontar um direito individual do Trabalho largamente protetivo, caracterizado por métodos, princípios e regras que buscam reequilibrar, juridicamente, a relação desigual vivenciada na prática cotidiana da relação de emprego.

O direito coletivo, ao contrário, é ramo jurídico construído a partir de uma relação entre seres teoricamente equivalentes: seres coletivos ambos, o empregador de um lado e, de outro, o ser coletivo obreiro, mediante as organizações sindicais. em correspondência a esse quadro fático distinto, emergem, obviamente, no direito coletivo, categorias teóricas, processos e princípios também distintos.

No estudo global dos princípios justrabalhistas, é importante respeitar-se a diferenciação entre direito individual e direito coletivo. entretanto, é também fundamental que na análise particularizada de qualquer um dos dois segmen-

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tos sempre se preserve a perspectiva referenciada ao outro segmento justrabalhista correlato. direito individual e direito coletivo são, afinal, partes integrantes de uma mesma realidade jurídica especializada, o direito do Trabalho.

O direito coletivo atua, porém, de maneira intensa sobre o direito individual do Trabalho, uma vez que é cenário de produção de um destacado universo de regras jurídicas, consubstanciado no conjunto de diplomas autônomos que compõem sua estrutura normativa (notadamente, convenção, acordo e contrato coletivo de Trabalho). desse modo, o direito coletivo pode alterar o conteúdo do direito individual do Trabalho, ao menos naqueles setores econômico-profissionais em que incidam seus específicos diplomas. desde a constituição de 1988, a propósito, ampliou-se o potencial criativo do direito coletivo, lançando ao estudioso a necessidade de pesquisar os critérios objetivos de convivência e assimilação entre as normas autônomas negociadas e as normas heterônomas tradicionais da ordem jurídica do país.

II Princípios especiais do direito coletivo - tipologia

O direito coletivo do Trabalho, enquanto segmento jurídico especializado, constitui um todo unitário, um sistema, composto de princípios, categorias e regras organicamente integradas entre si. Sua unidade — como em qualquer sistema — sela-se em função de um elemento básico, sem o qual seria impensável a existência do próprio sistema. neste ramo jurídico, a categoria básica centra-se na noção de relações coletivas trabalhistas, a que se vincula a de ser coletivo, presente em qualquer dos polos da relação jurídica nuclear deste direito. Ser coletivo empresarial (com ou sem representação pelo respectivo sindicato) e ser coletivo obreiro, mediante as organizações coletivas da classe trabalhadora — especialmente os sindicatos.

Os princípios do direito coletivo do Trabalho constroem-se, desse modo, em torno da noção de ser coletivo e das prerrogativas e papéis assumidos por tais sujeitos no contexto de suas relações recíprocas e em face dos interesses que representam.

A tradição autoritária da história brasileira ao longo do século XX comprometeu, significativamente, o florescimento e maturação do direito coletivo no país. isso levou até mesmo a que se chegasse a pensar (e teorizar) sobre a inexistência de princípios próprios ao direito coletivo. esse viés teórico (compreensível em vista da longa cristalização autoritária no plano das relações coletivas no Brasil) não deve prejudicar, contudo, hoje, o desvelamento dos princípios informativos do segmento coletivo negociado, uma vez que, desde a constituição de 1988, essa pesquisa e revelação tornou-se crucial para o entendimento do novo direito do Trabalho em construção no país.

Mais: o desconhecimento sobre os princípios especiais do direito coletivo do Trabalho irá certamente comprometer o correto e democrático enfrentamento

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dos novos problemas propostos pela democratização do sistema trabalhista no Brasil. a não compreensão da essencialidade da noção de ser coletivo, da relevância de ser ele representativo e consistente para de fato assegurar condições de equivalência entre os sujeitos do ramo juscoletivo trabalhista, simplesmente dilapida toda a noção de direito coletivo do Trabalho e de agentes coletivos atuando em nome dos trabalhadores.

Tipologia de princípios

Os princípios, como qualquer outro instituto jurídico, podem ser ordenados segundo diferentes classificações, a teor dos elementos que se considerem relevantes para sua ordenação. não se deve perder de vista, entretanto, que o estudo visa à revelação, ao esclarecimento, à compreensão do fenômeno enfocado — para isso é que vale a ciência, afinal. desse modo, é recomendável que a classificação construída seja funcional, prática, para melhor esclarecimento da matéria examinada. nessa medida é que preferimos a presente tipologia, que foi elaborada com vista à mais clara compreensão da própria existência e funções do segmento juscoletivo trabalhista.

Em tal quadro, os princípios do direito coletivo do Trabalho podem ser classificados em três grandes grupos, segundo a matéria e objetivos neles enfocados. Trata-se, pois, do grupo de diretrizes assecuratórias das condições de emergência e afirmação da figura do ser coletivo obreiro; das diretrizes que regem as relações entre os seres coletivos obreiros e empresariais, no contexto da negociação coletiva; finalmente, o grupo de diretrizes que informam as relações e efeitos perante o universo e comunidade jurídicos das normas produzidas pelos contratantes coletivos122.

Destaque-se, pois, em primeiro lugar, o rol de princípios assecuratórios das condições de emergência e afirmação da figura do ser coletivo obreiro. Trata-se de princípios cuja observância viabiliza o florescimento das organizações coletivas dos trabalhadores, a partir das quais serão tecidas as relações grupais que caracterizam esse segmento jurídico específico.

Neste rol estão os princípios da liberdade associativa e sindical e da autonomia sindical.

Em seguida, destaque-se o rol de princípios que tratam das relações entre os seres coletivos obreiros e empresariais, no contexto da negociação coletiva. São princípios que regem as relações grupais características do direito coletivo, iluminando o status, poderes e parâmetros de conduta dos seres coletivos trabalhistas.

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Citam-se, neste segmento, o princípio da interveniência sindical na normatização coletiva, o da equivalência dos contratantes coletivos e, finalmente, o da lealdade e transparência nas negociações coletivas.

Faça-se destaque, por fim, do conjunto de princípios que tratam das relações e efeitos perante o universo e comunidade jurídicos das normas produzidas pelos contratantes coletivos. Esse grupo de princípios ilumina, em síntese, as relações e efeitos entre as normas produzidas pelo Direito Coletivo, por meio da negociação coletiva, e as normas heterônomas tradicionais do próprio Direito Individual do Trabalho.

Neste rol encontram-se princípios como o da criatividade jurídica da negociação coletiva e o princípio da adequação setorial negociada.

III P rincípios assecuratórios da existência do ser coletivo obreiro

O primeiro grupo, como visto, diz respeito aos princípios que visam assegurar a existência de condições objetivas e subjetivas para o surgimento e afirmação da figura do ser coletivo.

O enfoque aqui centra-se no ser coletivo obreiro, isto é, na criação e fortalecimento de organizações de trabalhadores que possam exprimir uma real vontade coletiva desse segmento social. Trata-se, pois, do surgimento e afirmação de entidades associativas obreiras que se demarquem por efetivo potencial de atuação e representação dos trabalhadores, globalmente considerados.

Tais princípios não se formulam, portanto, direcionados à criação e fortalecimento do ser coletivo empresarial. Este já existe, necessariamente, desde que haja a simples figura da empresa. Este não depende de indução ou garantias externas especiais, provindas de norma jurídica; ele já existe, automaticamente, desde que exista organização empresarial no mercado econômico. É que o empregador, como se sabe, é, por definição, necessariamente um ser coletivo (excetuado o doméstico, é claro). É inevitável ser...

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