Entre espécies e ciências: uma reflexão sobre a utilização de argumentos científicos para legitimação da causa animal

AutorEveline Teixeira Baptistella - Juliana Abonizio
CargoMestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal do Mato Grosso - Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
Páginas76-105
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2016v13n2p76
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.13, n.2, p.76-105 Mai-Ago. 2016
ENTRE ESPÉCIES E CIÊNCIAS: UMA REFLEXÃO SOBRE A UTILIZAÇÃO DE
ARGUMENTOS CIENTÍFICOS PARA LEGITIMAÇÃO DA CAUSA ANIMAL
Eveline Teixeira Baptistella
1
Juliana Abonizio
2
Resumo:
O conhecimento científico estabelece-se, ao longo da modernidade, como o único
conhecimento verdadeiro e vários princípios fundamentam suas práticas, dentre os
quais destacamos o objetivo de dominação da natureza, a certeza na supremacia da
espécie humana diante das demais e a validade epistemológica do fato. Não
obstante, as descobertas realizadas pela ciência possibilitaram o questionamento de
alguns de seus próprios fundamentos, como a superioridade dos humanos, e, assim,
engendraram o desenvolvimento de argumentos de defesa dos animais baseados
também em fatos. Dentro desse contexto, o objetivo deste trabalho é refletir sobre
como a construção de um conhecimento sobre animais e suas relações com
humanos têm contribuído para transformações dos embasamentos éticos que
subjazem às ações cotidianas. Através da análise do caso do cão Scooby, vemos
que, apesar das transformações supracitadas, a vida humana tem o privilégio diante
das vidas das demais espécies.
Palavras-chave: Humanidades. Estudos animais. Direitos animais. Cultura
científica.
1 INTRODUÇÃO
Para provar que um animal sente dor, Chuahy (2009, p.20) cita um teste de
laboratório realizado pela Escola de Ciências Biológicas da Universidade de
Liverpool, que demonstra comportamentos associados à dor. Ao ser queimado, um
ser vivo afasta a parte do corpo que está na chama. Também pode chorar, gritar,
pedir ajuda ou limitar o uso de partes do corpo machucadas. Vertebrados e alguns
invertebrados apresentam tais comportamentos nos testes. Segue-se a conclusão:
“Já que os animais vertebrados têm uma estrutura neurológica e o comportamento
1
Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal do Mato Grosso.
Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual de Mato Grosso, Alto
Araguaia, MT, Brasil. E-mail: evelbap@gmail.com
2
Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professora da
Universidade Federal de Mato Grosso no Programa de Pós-Graduação Estudos de Cultura
Contemporânea em Cuiabá, MT Brasil. E-mail: abonizio.juliana@gmail.com
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diante da dor parecidos com o nosso, acredita-se que eles também têm a habilidade
de sentir e sofrer” (CHUAHY, 2009, p.21).
Para nossa reflexão, o resultado do trabalho é menos importante do que a
maneira como ele foi descrito. Apesar de o animal demonstrar comportamento
idêntico ao de qualquer ser humano com dor, a autora tem a cautela de escrever
que “acredita-se” que os não-humanos sentem e sofrem. É revelador que se trate de
um livro que se chama “Manifesto pelos direitos dos animais, o que daria a autora
alguma liberdade para conferir aos bichos, cujos direitos procura defender, o
benefício da afirmação de que eles, de fato, são capazes de sentimentos, coisa que
qualquer pessoa que convive um animal de estimação poderia afirmar sem hesitar.
É possível atribuir o cuidado da autora à preocupação em oferecer uma
análise imparcial, amparada estritamente em dados cientificamente comprovados. É
uma postura adotada para garantir a credibilidade. As questões morais e éticas
apoiam-se na retórica científica que, apesar de basear-se na dúvida - afinal, apenas
acredita-se que o bicho tem dor - tem estatuto de verdade. Pensando nesta questão,
propusemo-nos a refletir sobre as relações entre humanos e não-humanos,
questionando os códigos éticos que guiam essas relações e as bases científicas que
os fundamentam.
O relacionamento de humanos com os animais tem diversas facetas e entre
elas estão o afeto e a empatia, sentimentos que impulsionam os movimentos de
defesa. Estes aspectos, no entanto, não são plenamente reconhecidos quando se
trata de argumentar em prol de políticas de proteção animal, uma vez que, conforme
Francione (2013), em nossa sociedade o bem-estar humano é sempre sobreposto
ao de outras formas de vida.
Assim, este trabalho teve como ponto de partida um questionamento: por que
os movimentos de proteção, apesar de defenderem o valor intrínseco das vidas dos
animais não-humanos, embasam seus discursos prioritariamente em dados
científicos como pesquisas que mostram as capacidades cognitivas dos animais
e não apenas nos argumentos éticos?
Nossa hipótese é que algumas heranças da modernidade operaram nesse
modelo de argumentação adotado pelos ativistas da causa, em especial a dicotomia

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