O estabelecimento empresarial no direito brasileiro

AutorJosé Tadeu Neves Xavier
Páginas90-111

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1. Considerações iniciais

Todo aquele que busca atuar no mercado, desenvolvendo atividade económica organizada para a produção ou circulação de bens ou prestação de serviços, por mais singelas que sejam as suas pretensões negociais, necessita se aparelhar de forma adequada, para que possa obter o melhor proveito possível. Este aparelhamento, com a congregação de bens materiais e imateriais necessários ao desempenho da atividade económica, é representado pelo estabelecimento empresarial.1 Na feliz síntese formulada por Rubens Requião, o estabelecimento pode ser entendido como o instrumento da atividade do empresário, que com ele se aparelha para exercer sua atividade.2

É possível afirmarmos que há uma relação direta entre a empresa - entendida como atividade desenvolvida pelo empresário - e a noção de estabelecimento empresarial. Na precisa afirmação de Francesco Galgano, entre o estabelecimento e a empresa há uma relação de meio e fim.3 No passado, por força da a célebre construção desenvolvida por Alberto Asquini, as noções de estabelecimento e

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empresa chegaram a se confundir. Este jurista via a empresa como uma figura poliédrica, compreendendo quatro perfis - subjetivo, funcional, corporativo e objetivo -, sendo este último equivalente à noção que hoje se entende por estabelecimento.4

A codificação civil atual, de forma precursora, encarregou-se de fixar as balizas para a existência de uma disciplina jurídica adequada a regulamentar o estabelecimento empresarial.5 Anteriormente a utilização da expressão ocorria apenas de forma incidental, no Código Comercial de 1850 e no capítulo do Código Civil anterior, referente à emancipação,6 sendo que o tema em si apenas ocupava a atenção da doutrina e da jurisprudência,7 não recebendo normatização específica e sistematizada. No entanto, era possível identificar o enfrentamento da matéria na legislação esparsa, de forma pontual e desarticulada, como ocorria na Lei de Luvas (Decreto n. 24.150/1934), na legislação falimentar (Decreto-lei n. 7.661/1945) e no Decreto-lei n. 1.005/1969, que dispunha sobre o título de estabelecimento. Não se pode olvidar, ainda, da referência feita pelo Código Tributário Nacional, relativa à responsabilidade fiscal, nos casos de transferência ou alienação do estabelecimento empresarial.

2. A noção de estabelecimento empresarial

Hernani Estrela, ao tratar do estabelecimento, explica que este apresenta suas raízes no comércio do Medievo, que mesmo de forma precária, já dava indícios relativos à sua presença nas relações comerciais desta época, afirmando: "é certo que os comerciantes medievos não o ignoravam, sobretudo naquela fase de florescimento do comércio, nas comunas italianas, onde surgiram inúmeras 'aziendas', para as quais os jurisconsultos tinham de traçar disciplina jurídica, que o direito vigente não oferecia. Mas foi, principalmente, a partir do século passado, por força

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do grande número de operações que tinham o estabelecimento porobjeto, que este começou, cada vez mais, a prender a atenção dos juristas e legisladores", arrematando: "antes que isso acontecesse, porém, a expressão já se tinha tornado conhecida e consagrada no comércio, mas sem ter, até então, entrado para o vocabulário jurídico".8

Esta observação de Hernani Estrela indica que a ideia de existência de um instrumental apto a aparelhar o negociante no desempenho de sua atividade representa um sentimento tão antigo quanto a própria prática do comércio, e que decorre de um instinto natural presente em todo aquele que busca fazer da mercancia a sua atividade profissional. Mesmo em ambientes sociais não tão férteis a atividade negocial, em que esta era desempenhada de forma rudimentar e primária, como o medievo, a sua presença já se fazia necessária.

Rubens Requião indica que a noção de fundo de comércio - estabelecimento empresarial - somente surgiu como categoria moderna no século XIX, na França, por meio de lei datada de 28 de fevereiro de 1872.9 No entanto, a busca de uma noção jurídica adequada a reproduzir o sentido da expressão estabelecimento empresarial somente foi construída com o passar do tempo, e ainda hoje não representa tarefa fácil de ser desempenhada.

2. 1 Terminologia

Ao dedicar-se ao estudo do estabelecimento, Marcelo Andrade Féres aponta que a noção vulgar é um antecedente necessário de toda ciência, de forma que o empirismo em muito pode contribuir como balizamento indutivo da significação que as palavras assumem dentro a linguagem jurídica.10 O Direito Empresarial não foge a esta regra, e em muitos casos este ramo do direito se vale, na composição dos seus signos linguísticos, das categorias que emergem dos costumes de mercado. Um exemplo significativo desta situação pode ser identificado na utilização da expressão estabelecimento, que goza de um sentido comum, sendo ordinariamente utilizada no meio negocial para identificar o local onde o empresário tem as suas instalações ou onde a atividade empresarial é desenvolvida. Numa rápida pesquisa em qualquer dicionário da língua portuguesa será comum encontrarmos a atribuição ao estabelecimento do significado de casa comercial. Na linguagem jurídica atual a palavra estabelecimento - embora não seja vinculada ao local de desempenho da atividade, mantém sentido muito próximo daquele que lhe é ordinariamente atribuído, de forma a permitir um constante e necessário diálogo entre o direto e o mercado.

O Código Civil utiliza-se da expressão estabelecimento, dedicando-lhe um tópico especial no Livro que disciplina o Direito de Empresa, localização que se mostra adequada, face à sua inequívoca vinculação a atividade empresarial.11 No entanto, vulgarizou-se na doutrina a expressão estabelecimento empresarial, em substituição a antiga referência ao estabelecimento comercial, que antes da codificação atual vigorava entre os doutrinadores deste ramo jurídico.12 No direito comparado

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esta figura jurídica é conhecida como azienda commerciale,fondo oufondaco (direito italiano);fonds de commerce, maison de commerce ou établissement commercial (direito francês) e por hacienda mercantil, establecimiento, oufondo de comercio, nos países de língua espanhola. Na língua inglesa é frequente a utilização das expressões goodwill ou good will ofa trade, na identificação do estabelecimento.13

Além da utilização da expressão estabelecimento empresarial, firmada pelo legislador da codificação civil atual, constata-se que a doutrina abalizada também mostra simpatia pelo uso da expressãofundo de empresa, como forma de designação desta realidade. No entanto, o manuseio indistinto destas referências não goza de integral aceitação. Na visão de Fábio Ulhoa Coelho fundo de empresa seria expressão que somente poderia ser veiculada como sinônima de aviamento.14

2. 2 Definição de estabelecimento empresarial

Aexperiência do direito comparado é no sentido de inexistência de definição legislativa sobre estabelecimento, repassando-se à doutrina esta tarefa, que de regra não se exime de desempenhá-la com afinco. Assim ocorre no direito francês, português, tedesco, entre outros, a exceção do direito italiano.

O legislador brasileiro fugiu a tendência da maioria dos países e, por meio do art. 1.142 da Codificação Civil atual, definiu o estabelecimento como o complexo de bens organizado, para o exercício da empresa, por empresário ou por sociedade empresária.15 Tal conceituação tem exata equivalência ao texto do Código Civil italiano ("art. 2.555: L'azienda è il complesso dei beni organizzati dall’imprenditore perl’esercizio dell’impresa") o que indica uma vincula-ção do modelo legislativo brasileiro à este sistema,16 e corresponde, em grande parte,

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a definição que já vinha sendo talhada pela doutrina tradicional.17

A tipificação legal sobre o estabelecimento não chega a reproduzir toda a complexidade que o conceito encerra, pois apenas põe em relevo a sua natureza como um bem complexo ou coletivo, ou seja, um conjunto de bens que é recebido como unidade patrimonial.

Para que se obtenha visão adequada sobre o estabelecimento empresarial, mister se faz ter presente o que a doutrina convencionou designar de escopo produtivo, ou seja, a organização deste conjunto de bens visando a realização de uma atividade produtiva específica. Deve haver, portanto, uma ligação funcional entre estes bens que compõem o estabelecimento, para que este reste caracterizado como tal.

Neste sentido, na III Jornada sobre o Código Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, este tema veio à tona, ensejando a criação do Enunciado de n. 233, nos seguintes termos: "A sistemática do contrato de trespasse delineada pelo CC 1.142 e ss., especialmente seus efeitos obrigacionais, aplica-se somente quando o conjunto de bens transferidos importar a transmissão da funcionalidade do estabelecimento empresarial".

Nas precisas palavras de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery: "um conjunto ou agrupamento de bens isolados, sem a ligação funcional, em princípio não se caracteriza como estabelecimento, mas sim como integrante do patrimônio do empresário ou da sociedade empresária. O estabelecimento empresarial (ou fundo de comércio) não pode ser confundido com o patrimônio da sociedade".18

A identificação do estabelecimento empresarial pela funcionalidade existente entre os bens que o compõem é o aspecto...

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