Estatuto da pessoa com deficiência e aspectos da proteção ao deficiente intelectual ou psíquico no direito contratual

AutorEduardo Nunes de Souza
Páginas429-463
ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
E ASPECTOS DA PROTEÇÃO AO DEFICIENTE
INTELECTUAL OU PSÍQUICO
NO DIREITO CONTRATUAL
Eduardo Nunes de Souza
Doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor adjunto de Direito Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da
Faculdade de Direito da UERJ.
“Os conselhos tendem a ser julgados geralmente
pelos resultados, e não pelas intenções”.
– Cicero (Att., 9.7a.1)
Sumário: 1. Introdução: o problema da proteção jurídica de contratantes vulneráveis – 2.
A incompreensão sofrida pela incapacidade civil – 3. A solução oferecida pelo sistema de
invalidades negociais – 4. Em lugar de uma conclusão: (novos?) problemas suscitados pelo
Estatuto da Pessoa com Deciência. – 5. Referências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO: O PROBLEMA DA PROTEÇÃO JURÍDICA DE
CONTRATANTES VULNERÁVEIS
O contrato, dispõe o Código Civil francês, faz lei entre as partes.1 A vetusta lição
do Code, tão mitigada ao longo dos dois séculos a ela subsequentes, pode parecer
um ponto de partida inadequado para um estudo contemporâneo sobre o direito
contratual. De fato, a tradição romano-germânica evoluiu na direção de flexibilizar o
princípio da obrigatoriedade dos pactos em prol da tutela de outros interesses, como
o equilíbrio das prestações (sujeito às mais variadas vicissitudes supervenientes à
estipulação da avença) ou a própria boa-fé objetiva. De outra parte, o princípio da
autonomia privada, fundamento valorativo mais direto da regra pacta sunt servanda,
foi amplamente funcionalizado à tutela de outros interesses juridicamente relevantes
ao longo do tempo.2 Em certa medida, a autonomia privada, em si considerada, tor-
nou-se uma temática antiquada, e a obrigatoriedade dos pactos, seu reflexo menos
atraente aos olhos de muitos estudiosos.
1. A regra se encontra, atualmente, prevista no art. 1.103 do Código Civil francês: “Les contrats légalement
formés tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faits”.
2. Por todos, cf. RODOTÀ, Stefano. Le fonti di integrazione del contratto. Milano: Giuffrè, 1969, p. 15.
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É, no entanto, a certeza de que os pactos devem, em princípio, ser cumpridos que
serve de base, ainda e sempre, ao inteiro sistema normativo em matéria contratual.
Mais do que isso, trata-se do grande problema subjacente à discussão, permanen-
temente atual, acerca da proteção de contratantes vulneráveis. De fato, apenas se
cogita diuturnamente da necessidade de se protegerem certas pessoas em determi-
nadas relações contratuais na medida em que se identifica no contrato uma ameaça:
nomeadamente, aquela decorrente da força vinculante da declaração de vontade e
dos mecanismos coercitivos que a ordem jurídica reconhece às partes para fazerem
valer os efeitos negociais em caso de descumprimento. Em outros termos, quando
se fala em proteção de contratantes, cuida-se da tutela das partes contra o efeito
vinculante de suas próprias declarações de vontade – efeito este que, a despeito de
seu caráter basilar na teoria geral dos contratos, pode se revelar, no caso concreto,
contrário ao ordenamento pelos mais variados motivos (ilustrativamente, desde um
possível desequilíbrio superveniente da relação contratual até a eventual fragilidade
da própria vontade declarada no momento de formação da avença).
Muitas categorias de contratantes (cujas vulnerabilidades,3 tão variadas quanto
essas categorias, demandam disciplinas jurídicas bastante distintas) já ocuparam
o centro das atenções da civilística e, eventualmente, retornam para essa posição:
assim se pode dizer, por exemplo, sobre o consumidor, o aderente, o inquilino, o
adquirente de imóveis, o mutuário, o empregado e muitos outros. Recentemente,
retornou à ordem do dia uma das categorias há mais tempo tuteladas pelo direito
civil: a das pessoas com deficiência intelectual ou psíquica, as quais foram retiradas,
na reforma promovida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) em 2015, do
rol de pessoas juridicamente incapazes. Os motivos para esse retorno são evidentes,
e já eram sentidos pela doutrina anteriormente à reforma legislativa: a incapacidade
prevista pela redação original dos arts. 3º do Código Civil não se mostrava suficiente
para tutelar de modo adequado os contratantes com deficiências mentais, pois sem-
pre era necessário graduar concretamente a capacidade do agente, de acordo com
seu nível de discernimento.4 De fato, como se extrai de conhecida lição da doutrina
3. Sobre a expansão das acepções do termo vulnerabilidade, registra Carlos Nelson Konder que a expressão,
“oriunda dos debates sobre saúde pública, hoje é utilizada no direito civil em suas mais diversas vertentes,
do direito de família ao direito do consumidor. [...] No entanto, a proliferação das referências, em contextos
e com significados diversos, gera o receio de uma superutilização da categoria, que lhe venha a esvaziar o
conteúdo normativo. A falta de cuidado na definição de seus contornos científicos arrisca banalizar sua
invocação, transformando-a de importante instrumento jurídico de alteração da realidade em mera invoca-
ção retórica, sem força normativa efetiva, processo que já foi alertado pela doutrina no tocante a conceitos
igualmente importantes e abrangentes, como a boa-fé e a dignidade da pessoa humana” (KONDER, Carlos
Nelson. Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema diferenciador. Revista
de Direito do Consumidor, vol. 99. São Paulo: RT, mai.-jun./2015, p. 101, 2015, p. 101).
4. Particularmente em relação aos atos existenciais, cf., por todos, a lição de Ana Carolina Brochado Teixeira,
antes do advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência: “Por se tratar de ato afeto à realização da dignidade
humana, a subjetividade do agente deve ser valorizada o quanto for possível, isto é, de forma proporcional
ao discernimento, que se torna uma condição material imprescindível para a validade da manifestação de
vontade em situações jurídicas existenciais, pois demonstra independência da vontade, sem atuação de
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EPD E PROTEÇÃO AO DEFICIENTE INTELECTUAL OU PSÍQUICO NO DIREITO CONTRATUAL
civil-constitucional, os remédios devem ser adequados aos interesses protegidos,5
e o regime rígido e estruturalista previsto pelo Código Civil para as incapacidades
parecia não dar conta da multiplicidade de deficiências (e respectivos graus de vul-
nerabilidade) que poderiam surgir em concreto.
A reforma, porém, tem sido bastante criticada, dadas as modificações drásticas,
precipitadas e potencialmente desastrosas produzidas no sistema normativo da inca-
pacidade civil6 (e tão premente se tornou essa crítica que acabou por obscurecer um
sem-número de instrumentos de enorme valia previstos pelo EPD em prol da tutela
das pessoas com deficiência, aos quais ainda não se conferiu, infelizmente, a devida
atenção). Com efeito, como se buscará demonstrar a seguir, ao retirar a pessoa com
deficiência intelectual ou psíquica do rol de pessoas civilmente incapazes, o Estatuto
caminhou na direção contrária da tutela de contratantes vulneráveis: passou a sujeitar
plenamente tais pessoas aos efeitos vinculantes dos contratos por elas celebrados.
2. A INCOMPREENSÃO SOFRIDA PELA INCAPACIDADE CIVIL
Em sua feição mais tradicional, a teoria das incapacidades – âmbito do direito
civil onde o pensamento estruturalista sempre pareceu vigorar com particular força
– costuma reduzir o problema da proteção de contratantes vulneráveis à criação de
duas categorias essencialmente incomunicáveis: capazes e incapazes.7 Trata-se de
uma inadmissível (mas historicamente consolidada) simplificação da questão, em
particular quando a vulnerabilidade do agente decorre de deficiência intelectual ou
psíquica. De fato, a complexidade da mente humana põe em xeque a antiquada noção
segundo a qual a falta de discernimento afetaria do mesmo modo a aptidão para a
realização de todo e qualquer ato da vida civil, sem qualquer distinção ou gradação;
até mesmo as regras de experiência comum desafiam semelhante perspectiva, em
uma mudança que já foi denominada “a revanche da vida” sobre as regras jurídicas.8
Nesse sentido, cresceram as preocupações acerca da grave intransigência da
categoria clássica da incapacidade civil motivada por deficiência mental: de fato, se
a incapacidade por razão etária ao menos oferece uma saída para o seu rígido sistema
(a maioridade civil, que a extingue), o mesmo não se podia afirmar sobre a incapa-
cidade que era atribuída às pessoas com deficiência mental, para as quais a restrição
à pratica pessoal de certos atos era tendencialmente permanente. A despeito de seu
enorme potencial para exercer uma função protetiva, a incapacidade civil dessas
forças externas ou vícios de consentimento” (TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia
privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 160).
5. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 374.
6. Ilustrativamente, cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. I. Atual. Maria Celina
Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: GEN, 2017, p. 228.
7. Cuida-se aqui do raciocínio descrito por Stefano Rodotà como a “lógica binária da alternativa seca entre
o sim e o não, entre a capacidade e a incapacidade” (RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non
diritto. Roma: La Feltrinelli, 2006, p. 28. Tradução livre).
8. RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Roma: La Feltrinelli, 2006, p. 27.
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