Estatuto das empresas estatais à luz da constituição federal

AutorRicardo Marcondes Martins
Páginas17-112
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ESTATUTO DAS EMPRESAS ESTATAIS
À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
RICARDO MARCONDES MARTINS
Sumário: 1. Por que divergimos? 2. Diretriz hermenêutica
fundamental. 3. Regime jurídico das empresas estatais. 3.1
Primeira fase: regime privado. 3.2 Segunda fase: regime híbrido.
3.3 Terceira fase: retrocesso neoliberal. 3.4 Quarta fase:
purificação científica. 3.4.1 Fuga para o Direito privado. 3.4.1.1
Contrafações de autarquias. 3.4.1.2 Concessão de serviço
público. 3.4.2 Exploração de atividade econômica. 3.4.2.1
Reserva legal. 3.4.2.2 Monopólios federais. 3.4.2.3 Atividade
concorrencial. 3.4.2.3.1 Reserva legal. 3.4.2.3.2 Segurança
nacional e relevante interesse coletivo. 3.4.2.3.3 Regulação
econômica. 3.4.2.4 SEM e EP. 3.4.2.4.1 Contrafações de
empresas públicas. 3.4.2.4.2 Empresas estatais de segundo grau.
3.4.2.4.3 Participação em empresa privada. 3.4.2.4.4 Natureza
federativa. 3.4.2.4.5 Empresas federais. 3.4.2.4.6 Capital privado.
Referências bibliográficas.
1. POR QUE DIVERGIMOS?
Em 30 de junho de 2016 foi promulgada a Lei Federal n. 13.303,
disciplinadora do regime jurídico das empresas públicas, das sociedades
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RICARDO MARCONDES MARTINS
de economia mista, e de duas subsidiárias, logo apelidada de “Estatuto
Jurídico das Empresas Estatais”. A Lei já conta com duas excelentes obras
dedicadas a comentar seus dispositivos.1 Os respectivos autores tiveram
a principal preocupação de entender o sentido e o alcance das novas
regras legislativas, produziram obras práticas, de inestimável valor para
os operadores do direito. Editado um novo diploma normativo, a
preocupação dos juristas em geral é entendê-lo; é muito compreensível
que o primeiro olhar seja para o diploma em si, com a leitura de cada
um dos dispositivos individualmente considerados. Essa atitude é uma
inclinação natural de todo jurista que se depara com uma nova lei. Pode,
contudo, gerar desastrosos equívocos.
Como afirma o ínclito jusfilósofo argentino Carlos Santiago Nino,
a dogmática jurídica impõe ao intérprete pressupor que o conjunto
normativo seja coerente.2 Em sentido uníssono, para Ronald Dworkin
existem dois princípios de integridade política, um destinado ao editor
normativo, outro destinado ao aplicador, segundo os quais as normas
jurídicas devem ser vistas como um “sistema único e coerente de justiça
e equidade na correta proporção”.3 A doutrina desses autores da moda,
porém, apenas retoma uma velha lição, difundida pelos doutos na mais
aprazível das harmonias. Friedrich Karl von Savigny, em aula proferida,
segundo informado por Karl Larenz, no Curso de Inverno de 1802-1803,
que resultou na obra “Metodologia Jurídica”4, já assentava que a
1 A pioneira foi a obra organizada por JUSTEN FILHO, Marçal (coord.). Estatuto
jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016,
em que, além do coordenador, participam trinta juristas. Pouco depois, foram editados
os comentários de GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das
estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei 13.303/2016.
Belo Horizonte: Fórum, 2017.
2 Introdução à análise do direito. Tradução de Elza Maria Gasparotto. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2015, p. 387. Segundo a teoria do legislador racional, exposta pelo
autor, o intérprete deve pressupor que o Legislador seja único, imperecível,
consciente, onisciente, operante, justo, coerente, onicompreensivo e preciso
(pp. 386-387).
3 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 264.
4 Cf. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Calouste
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ESTATUTO DAS EMPRESAS ESTATAIS À LUZ DA CONSTITUIÇÃO...
“legislação apenas expressa um todo”.5 Poucas décadas depois, em outubro
de 1829, Friedrich D. E. Schleiermacher enunciou as bases da teoria do
círculo hermenêutico, segundo a qual, em síntese, tanto as partes são
compreendidas a partir do todo, como o todo é compreendido a partir das
partes.6 A teoria foi aprofundada, na hermenêutica, por Hans-Georg
Gadamer7 e difundida na seara jurídica por Karl Larnez.8 Com base na
contribuição do último, José Joaquim Gomes Canotilho, ao indicar o caráter
circular da interpretação normativa, afirma, com absoluta propriedade, que
as normas jurídicas estão num “processo bi-unívoco de esclarecimento
recíproco”.9 A lição não é desprezada pela doutrina pátria: Raimundo
Bezerra Falcão enfatiza que, como a ordem jurídica constitui um sistema,
e é da natureza deste ser uma unidade, a consideração do todo, na
interpretação de cada texto normativo, há de ser tida como inafastável;10
Gulbenkian, 1997, p. 8. A publicação do Curso deu-se em 1951, a partir dos
apontamentos feitos por Jakob Grimm (Idem, ibidem).
5 SAVIGNY, Friedrich Karl von. Metodologia jurídica. Tradução de Hebe A. M. Caletti
Marenco. Campinas: Edicamp, 2001, p. 18. Em seguida, complementa: “A interpretação
do particular também deve ser tal que, para poder compreender o particular, este se
deve amoldar ao todo. A exposição do todo não pertence a este ponto propriamente,
mas ao sistema. Porém, desde que cada parte não é inteligível sem o todo, deve ser
concebida em relação com o todo, tarefa semelhante àquela que existe no sistema, mas
com objetivos opostos” (p. 18).
6 SCHLEIERMACHER, Friedich D. E. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação.
Tradução de Celso Reni Braida. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco,
2003, p. 47. Nas palavras dele: “O princípio hermenêutico, exposto e desenvolvido
em várias direções pelo Sr. Ast, que assim como o todo seguramente é compreendido
a partir do particular, também o particular apenas pode ser compreendido a partir do
todo, é de tal alcance para esta arte, e tão indiscutível que já as primeiras operações
não podem ser estabelecidas sem o seu emprego, visto que uma grande quantidade de
regras hermenêuticas repousa mais ou menos sobre ele”. (Idem, ibidem). O autor
refere-se ao filólogo Friedrich Ast, cuja contribuição para a hermenêutica foi
pouquíssimo difundida.
7 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. Tradução de Ênio Paulo Giachini.
Petrópolis: Vozes, 2002, p. 72 ss.
8 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3ª ed.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 286.
9 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4ª
ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1139.
10 Hermenêutica. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 187.

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