O estatuto profissional dos arquitetos brasileiros

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas373-431

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Um bom arquiteto, hoje em dia, deve ser um generalista, muito versado em distribuição de espaço, em técnicas de construção e sistemas elétricos e mecânicos, mas também deve entender bem de finanças, bens imobiliários, comportamento humano e conduta social. Ademais, é um artista, com direito a expressar seus dogmas estéticos.

Mário Salvadori,

Por que os edifícios ficam de pé

I Introdução

Todas as profissões liberais extraem suas competências próprias e privativas da Constituição Federal. Trata-se de regra derivada da liber-dade de trabalho e profissão, inserida, tradicionalmente, dentre as liberdades fundamentais. O art. 5º/XIII da Constituição de 1988 dispõe: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. “Salvaguarda social” (como denominou o Ministro Carlos Ayres Brito no RE 603583), a cláusula final tem origem remota na Constituição Imperial de 1824, que dispunha: “Nenhum gênero de trabalho, de cultura, indústria e comércio, pode ser proibido uma vez que não se oponha aos costumes públicos, à segurança e à saúde dos Cidadãos (art. 179/XXIV). Portanto, a liberdade de trabalho, que é ampla, apenas pode ser contida ou restringida pela lei ordinária ao estabelecer certas qualificações específicas ou “condições de capacidade”, como dizia a Constituição anterior, para o exercício delas.

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A regra neste tema é a liberdade, assentou o STF. Porém, visando a proteção da sociedade, os profissionais liberais, de qualquer área, sujeitam-se a um regime restritivo excepcional porque exercem atividades com potencial dano social e que “assentam numa necessária tensão dialética entre capacidade e liberdade, e entre liberdade e responsabili-dade. (...) A autonomia de decisão que postulam nas situações da vida em que se inserem tem de ser constantemente alimentada por uma atitude crítica e pela criação e renovação científica e tecnológica”1. Assim, as leis exigem prévia formação universitária como condição básica de acesso a elas. É o caso da lei do CAU que contempla expressamente, no art. 6º/II, a necessidade de diploma de graduação em Arquitetura e Urbanismo, além do registro na corporação profissional decorrente, como condição para integração ao mercado de trabalho por pessoa física.

O Brasil já conheceu três diplomas legais disciplinando, em termos nacionais, o exercício da profissão de arquiteto, que, de modo amplo, é um “servidor da sociedade” (alto). O primeiro deles foi o Decreto federal nº 23.569, de 11 de dezembro de 1933, baixado pelo Chefe do Governo Provisório da República Federativa do Brasil e que regulava o exercício das profissões de engenheiro, arquiteto e agrimensor (este depois substituído pelo agrônomo)2. A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB fora criada em 1930, no mesmo processo histó-rico de institucionalização do país que caracteriza o governo Vargas. Entre 1930 e 1939, treze profissões liberais receberam regulamentação federal. Mas é certo que havia, antes disso, algumas leis estaduais regulamentadoras da profissão de arquiteto em São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. Estas leis estaduais, de 1924 e 1925 (as duas últimas), já

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reuniam, em estranha “simbiose”, engenheiros e arquitetos, profissões que tiveram uma longa e conturbada convivência.

Em São Paulo, era a Lei nº 2.022, de 27 de dezembro de 1924, que, dentre outras hipóteses, permitia o exercício da profissão àqueles que contassem mais de cinco anos de prática “no território do Estado”, mesmo sem diploma. Por isso, chamavam-se “práticos”3. O registro dos profissionais realizava-se na Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio que publicaria, semestralmente, a relação dos profissionais habilitados (art. 2º). Assim, o Código de Obras paulistano “Arthur Saboya”, de 1929, dizia no art. 81 que só poderiam cadastrar-se como construtores na capital – e portanto assinar projetos – os engenheiros e arquitetos que tivessem tal registro. Da mesma forma, no Rio de Janeiro, o Plano Agache, de 1930, trazia no Anexo B – “Projeto de regulamento regional para construções” capítulo referente aos “requisitos relativos a projetos execuções de obras” e, dentro dele, seção específica para disciplinar a atuação de “arquitetos, arquitetos-construtores, e construtores” (arts. 18-29). O art. 19 só admitia o registro na Prefeitura de “arquitetos diplomados” por institutos oficiais, brasileiros ou estrangeiros, embora o “prático” fosse ainda tolerado enquanto pagasse os tributos devidos.

No sistema do Decreto nº 23.569/33, as atribuições dos arquitetos vinham estabelecidas no art. 30: “a) o estudo, projeto, direção, fiscalização e construção de edifícios, com todas as suas obras complementares; b) o estudo, projeto, direção, fiscalização e construção das obras que tenham caráter essencialmente artístico ou monumental; c) o projeto, direção e fiscalização dos serviços de urbanismo; d) o projeto, direção e fiscalização das obras de arquitetura paisagística; e) o projéto, direção e fiscalização das obras de grande decoração arquitetônica; f) a arquitetura

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legal, nos assuntos mencionados nas alíneas ‘a’ e ‘c’ deste artigo; g) perícias e arbitramentos relativos à matéria de que tratam as alíneas anteriores”.

Para financiar a nova corporação profissional criada em 1933, oito anos depois, em 1941, foi instituída a obrigatoriedade do pagamento de anuidade ao CREA pelos profissionais, diplomados ou não, e pelas sociedades (Decreto nº 3.995). Foi disciplinado também o processo executivo fiscal para cobrança delas, bem como das multas, na Justiça, em caso de inadimplemento. As multas e a suspensão do exercício profissional eram as duas penalidades aplicáveis aos profissionais diplomados. A suspensão máxima, pelo prazo de seis meses a um ano, aplicava-se “ao profissional que, em virtude de erros técnicos, demonstrar incapacidade” (art. 38, “d”). A cassação da licença se restringia ao não diplomado.

O segundo diploma geral foi a Lei nº 5.194, de 24 de dezembro de 1966, que “regula o exercício das profissões de engenheiro, arquiteto e engenheiro-agrônomo” e ainda vigora para os profissionais, de nível médio e superior, das áreas da Engenharia, Agronomia, Geologia, Geografia e Metereologia. Conforme este diploma, as atribuições dos arquitetos foram definidas pela Resolução CONFEA 218/73, que já as dividia em trabalhos técnicos e campo material – modelo seguido agora pela lei do CAU (art. 2º). Porém, o campo material era o seguinte: “o desempenho das atividades 01 a 18 do artigo 1º desta Resolução [supervisão, projeto, assistência, direção, etc.], referentes a edificações, conjuntos arquitetônicos e monumentos, arquitetura paisagística e de interiores; planejamento físico, local, urbano e regional; seus serviços afins e correlatos”.

Com o avanço da tecnologia (= conhecimento científico transformado em produto), o sistema CREAs/CONFEA agigantou-se de tal forma que hoje somam várias dezenas as profissões ou habilitações por ele supostamente fiscalizadas. No interior da “babel”4, os arquitetos

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formavam uma “minoria desrespeitada” (Miguel Pereira). Escapando desse sistema em estado de entropia, o terceiro diploma é a chamada “lei do CAU”, abaixo integralmente reproduzida, ou seja, a Lei nº 12.378, de 31 de dezembro de 2010 que regula o exercício da Arquitetura e Urbanismo apenas. Trata-se do primeiro estatuto dos arquitetos aprovado em ambiente político democrático, o que não bastou para garantir qualidade excepcional à lei. Mas sua aprovação demonstrou o nível a que chegou a agregação da categoria profissional que antes ficava dispersa, entre outras formações, na sistemática anterior.

Na esteira da legislação estrangeira – da França em 1940 a Portugal em 1998 –, a autonomia corporativa dos arquitetos era longamente aguardada porque amiúde aqui também reivindicada. Como relata Adolfo Morales de los Rios Filho, já em 1920 houve o I Congresso Panamericano de Arquitetos, em Montevideo, que tinha como uma das teses a seguinte pergunta: “Convém regulamentar o exercício da profissão de Arquiteto?”, sendo dada resposta positiva porquanto “esse seria o meio mais adequado para melhorar o aspecto estético das cidades, estabelecendo desta sorte as condições gerais que devem preencher as vivendas, bem como o único recurso para que a segurança, higiene e beleza dos edifícios possam ser completamente satisfeitas”5. Na mesma obra – publicada em 1934 pela Escola Nacional de Belas Artes e pelo Instituto Central de Arquitetos do Brasil –, Adolfo Filho apresentava um anteprojeto de regulamentação específica da profissão, com 54 artigos. O art. 1º definia: “Arquiteto é o artista e técnico que compõe qualquer projeto arquitetônico, urbanológico ou paisagístico”. Apre-

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sentava ainda um anteprojeto de lei sobre os direitos de autor do arquiteto, que declarava: “o Arquiteto [assim grafado] tem direito à plena propriedade intelectual, artística e técnica de suas obras originais em quais quer das respectivas fases ou ciclos” (art. 6º).

Ademais, o número de escolas e, logo, de profissionais por elas formados, cresceu exponencialmente ao longo do tempo: em 1933 eram apenas cinco cursos no Brasil (três em São Paulo, no Rio e Minas Gerais), quase todos ligados à Engenharia6; hoje são 466 escolas distribuídas desigualmente no território brasileiro (de Direito, porém, há aproximadamente 1.300 faculdades). Apenas no Estado de São Paulo existem cinco graduações públicas em Arquitetura e Urbanismo – dois na Unesp, dois na USP e um na Unicamp – num total de 133 cursos, em 2015 (um número sempre mutante). Nos EUA, são pouco mais de 100 cursos, atualmente, que foram sendo criados a partir de 1868 (o primeiro foi o do Massachusetts Institute of Technology – MIT). Em toda a França são apenas 22 cursos, em 2013, com dois deles privados. Portanto, apesar da notória especificidade da profissão em face das demais...

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