Estrutura dos afetos

AutorFrancisco De Sales Gaudêncio/Hernani Maia Costa
Páginas169-233
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ESTRUTURA DOS AFETOS
Nos dias de hoje, os casamentos duradouros não são mui-
to comuns. Alcançar meio século de uma união conjugal com a
festiva e merecida celebração das bodas de ouro, é algo cada vez
mais raro. No entanto, a longevidade do enlace entre um homem
e uma mulher em uma relação duradoura e prazeirosa que é a de-
f‌inidora de um casamento feliz, ainda existe. Paulo e Sonia após
cinquenta anos de casados, quatro f‌ilhas e oito netos, são o claro
exemplo de que isso ainda pode ser encontrado. E a fórmula pare-
ce até simples, porque, desde o início, aprenderam a compartilhar
valores, a cultivar o respeito e admiração mútuos, aceitando as
eventuais diferenças e reconhecendo o que há de positivo no ou-
tro, respeitando-lhe o espaço e a privacidade. Sobretudo, apren-
deram a cumplicidade para alcançar objetivos, sejam eles comuns
ou individuais, atuando de forma diferente para sua consecução
de acordo com a maneira de ser de cada um.
Há quem diga, entre seus amigos, que ambos constituem
uma aliança providencial, uma parceria em que se juntam e se
complementam a contemplação e a ação. A pequena e exuberante
Sonia, sempre falante e irriquieta é a ação, a prática do saber fazer,
enquanto Paulo, mais reservado e ponderado, é a contemplação,
uma vez que o saber por ele buscado somente pode ser encon-
trado na esfera contemplativa do silêncio e da ref‌lexão. Para os
af‌iccionados nos segredos do zodíaco, contudo, isso somente foi
possível, pois embora com características até opostas, seus signos
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são compatíveis: ele, um bom sagitariano, o intelectual estudio-
so, sincero, modesto e bem humorado, adepto da liberdade e que
detesta as situações em que tenha que se preocupar com detalhes,
tem nela, a típica canceriana, o seu complemento. É ela, que gos-
ta da casa, da vida doméstica e estruturada, que sempre foi aten-
ta à criação dos f‌ilhas e muito prática, algumas características de
seu signo, que sempre criou as condições para que ele construisse
uma sólida carreira. De qualquer forma, foi a existência de muito
amor entre o casal, que permitiu que ambos se dispusessem a rea-
lizar ajustes em suas personalidades para que a união se tornasse
duradoura.
Paulo e Sonia começaram a namorar no início dos anos ses-
senta, a partir do que se costuma chamar uma feliz coincidência,
pois embora fossem mackenzistas, acabaram se conhecendo na
festa de noivado de uma prima de Sonia, na qual ele também esta-
va, só que acompanhado de uma namorada, por sinal uma prima
do noivo. A partir daí, começou a aproximação que acabaria em
casamento, não sem antes passar pelo noivado e pelo namoro, an-
tecedidos da fase do f‌lerte ou paquera, como se diz hoje, com os
encontros “casuais” promovidos pelos amigos ou quando ele, em
seu fusca, descia e subia a Rua Augusta, a Alta Augusta, é claro, o
point elegante daqueles tempos, seguindo-a com os olhos até sua
entrada no salão de cabelereiro. A mesma Rua Augusta da famo-
sa música cantada por Ronnie Cord, um rock and roll de 1963,
da fase que antecedeu a Jovem Guarda, e que foi um dos seus
grandes sucessos, uma composição do seu pai, o maestro mineiro
Hervé Cordovil.
Na ocasião, a família de Sonia morava na Rua Cônego
Eugênio Leite, 524, no Jardim Paulistano. Seu pai, o jauense
Mauro Marques Falcão, que vivia em São Paulo desde os catorze
anos, formado em farmácia, era empresário do ramo farmacêuti-
co, e sua mãe Egle Amalf‌i, que havia cursado a Escola Normal, era
professora de formação, embora nunca tenha lecionado. Seu úni-
co irmão, Antonio Sérgio Falcão, mais novo do que ela, também
viria a se formar em Direito. Sua formação escolar começou no
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Colégio Elvira Brandão, uma escola de excelência que funcionou
até a década de 1970 na Alameda Jaú, no Jardim Paulista, num
velho prédio que como outros tantos, não sobreviveram à febre
de verticalização que assolou a região. Atualmente, o colégio ocu-
pa novas instalações na Chácara Santo Antônio, em Santo Amaro.
Nele, Sonia fez todo o ciclo básico ou o curso primário, como era
então denominado e, ao contrário do que seria uma sequência
comum, não mostrou interesse em ir ao Ofélia Fonseca, uma es-
cola destinada às meninas da elite paulistana, que f‌icava no bairro
de Higienópolis, cursando todo o ginasial no Colégio Mackenzie.
Em seguida ao encerramento deste ciclo, deu continuidade aos
estudos fazendo o curso normal, o curso de Psicologia e, poste-
riormente, mestrado em Psicologia Clínica na Universidade de
São Paulo. Com formação em psicodrama pedagógico, é ana-
lista junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica e da International Association for Analytical Psichology,
de Zurique.
A paixão de Paulo pela vida noturna paulistana, um rapaz
mais velho, já na casa dos vinte e poucos anos, que fumava e be-
bia, além de ser um assíduo frequentador de bares e boates, inco-
modou muito de início, a família da namorada, a tal ponto que os
avós de Sonia insistiam em advertir seus pais sobre suas noitadas.
Af‌inal, ela tinha apenas dezesseis anos, ainda cursava o ginasial
e, além do mais, seria muito mais lógico que ela namorasse rapa-
zes da sua idade. Se não fosse a opinião de antigos vizinhos da
Alameda Lorena, no Jardim Paulista, amigos de seus pais e conhe-
cidos dos Marques Falcão, que na defesa de Paulo exaltaram suas
qualidades de bom moço, com a boa formação proporcionada
pela família a que pertencia, o namoro talvez não tivesse prospe-
rado. E acabou por prosperar, porque Leonardo e Mauro, pais dos
candidatos a um futuro casamento, se tornaram grandes amigos e
passaram a se frequentar nos f‌ins de semana estreitando, assim, as
relações entre as duas famílias. Leonardo se afeiçoara muito à na-
morada do f‌ilho, que segundo ele, embora bem mais jovem, havia
mudado e muito o seu modo de ser e de agir. Ele, que até então

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