Estruturação da cadeia produtiva da carne bovina no brasil, desenvolvimento e proteção ao mercado interno

AutorGilberto Bercovici
Páginas493-534
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ESTRUTURAÇÃO DA CADEIA
PRODUTIVA DA CARNE BOVINA NO
BRASIL, DESENVOLVIMENTO E
PROTEÇÃO AO MERCADO INTERNO
CONSULTA
A empresa X, por intermédio de seus ilustres Diretores, honra-me
com a presente consulta para elaboração de parecer sobre questões vin-
culadas à atuação da empresa no setor de carnes bovinas, cujos termos
são transcritos abaixo:
1. Qual o efeito de aquisições de frigoríficos pela empresa X sobre
a cadeia de produção de carne bovina? A estruturação de uma cadeia
produtiva forte de abate é importante para o desenvolvimento econômi-
co do país e para a proteção constitucional ao mercado interno brasileiro?
PARECER
1. INTRODUÇÃO
A importância da criação de gado na formação econômica e social
brasileira é destacada por inúmeros autores. Desde os primeiros cronistas
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GILBERTO BERCOVICI
da colônia até os grandes intérpretes da formação nacional, o gado bo-
vino teve sempre um papel destacado no que viria a ser o Brasil.
O jesuíta Antonil, em seu livro Cultura e Opulência do Brasil por
suas Drogas e Minas, cuja primeira edição é de 1711, ao descrever os
vários aspectos da economia colonial, percebeu a importância da criação
de gado para a vida dos habitantes da colônia:
“Para que se faça justo conceito das boiadas que se tiram cada ano dos
currais do Brasil, basta advertir que todos os rolos de tabaco que se
embarcam para qualquer parte vão encourados. E sendo cada um de
oito arrobas, e os da Bahia, como vimos em seu lugar, ordinariamen-
te cada ano pelo menos vinte e cinco mil, e os das Alagoas de Per-
nambuco dois mil e quinhentos, bem se vê quantas reses são necessá-
rias para encourar vinte e sete mil e quinhentos rolos. Além disto, vão
cada ano da Bahia para o Reino até cinquenta mil meios de sola; de
Pernambuco quarenta mil, e do Rio de Janeiro (não sei se computan-
do os que vinham da Nova Colônia ou só os do mesmo Rio e outras
capitanias do Sul), até vinte mil: que vem a ser por todos cento e dez
mil meios de sola. O certo é que não somente a cidade, mas a maior
parte dos moradores do recôncavo mais abundantes se sustentam, nos
dias não proibidos, da carne do açougue e da que se vende nas fregue-
sias e vilas, e que comumente os negros, que são um numero muito
grande nas cidades, vivem de fressuras, bofes e tripas, sangue e mais
fato das reses, e que no sertão mais alto a carne e o leite é o ordinário
mantimento de todos. Sendo também tantos os engenhos do Brasil
que cada ano se fornecem de bois para os carros, e os de que necessi-
tam os lavradores de canas, tabaco, mandioca, serrarias e lenhas, daqui
se poderá facilmente inferir quantos haverão mister de ano em ano,
para conservar este trabalhoso meneio. Portanto, deixar isto à consi-
deração de quem 1er este capítulo, julgo que será melhor acerto do
que afirmar precisamente o número das boiadas, porque nem os
mesmos marchantes, que são tantos e tão divididos por todas as partes
povoadas do Brasil, o podem dizer com certeza e dizendo-o, temo
que não pareça crível e que se julgue encarecimento fantástico”.1
1 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. São Paulo:
EDUSP, 2007. pp. 295-296.
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ESTRUTURAÇÃO DA CADEIA PRODUTIVA DA CARNE BOVINA NO BRASIL...
O historiador Capistrano de Abreu, em seu clássico estudo Os
Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil, de 1899, chama a atenção para
o papel do boi na formação e expansão dos primeiros caminhos terres-
tres que acabaram interligando os vários centros de povoamento espa-
lhados pela imensa área da América Portuguesa2:”O gado transporta o
dono. E pululam fazendas e nascem estradas e o povoamento quase
contínuo se torna ao menos no sentido longitudinal” .3
Como destacado por Capistrano de Abreu e, posteriormente, por
outros historiadores e estudiosos da formação brasileira, como Roberto
Simonsen e Caio Prado Jr., a criação de gado possibilitou a ocupação
de grande faixa do território brasileiro (o sertão), servindo tanto de re-
taguarda econômica da zona canavieira, forma de ocupação do interior,
como apoio decisivo para o estabelecimento dos centros mineradores
no interior da colônia, garantindo o seu abastecimento, além de gerar o
estabelecimento de vias de transporte e comércio por todo o território
brasileiro.4 Na descrição de Caio Prado Jr:
“Este comércio e consumo de carne relativamente avultados são
propulsores de uma das principais atividades da colônia: a pecuá-
ria; a única, afora as destinadas aos produtores de exportação, que
tem alguma importância. Não é com justiça que se relega em
nossa história para um plano secundário. Certo que não ostenta
2 ABREU, João Capistrano de. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Belo Horizonte/
São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1989. pp. 37-90.
3 ABREU, João Capistrano de. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Belo Horizonte/
São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1989. p. 73.
4 SIMONSEN, Roberto Cochrane. História Econômica do Brasil (1500/1820). ed.
São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1978. pp. 150-173 e 185-188 e PRADO Jr, Caio. Formação
do Brasil Contemporâneo – Colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 195-221.
Para a importância destes caminhos e estradas no abastecimento da Corte, no Rio de
Janeiro, a partir de 1808, vide LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: O Abastecimento
da Corte na Formação Política do Brasil – 1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979,
pp. 58-71. Sobre as dificuldades para o abastecimento de carne das cidades brasileiras
durante o século XIX e início do século XX, vide LINHARES, Maria Yedda Leite.
História do Abastecimento: Uma Problemática em Questão (1530-1918). Brasília:
BINAGRI Edições, 1979. pp. 191-208.

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