Estudo de biodireito: a morte como construção autobiográfica e as diretivas antecipadas de vontade

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas289-314

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Ver Nota12

1 Aproximação filosófica e jurídica dos contornos contemporâneos da autonomia

A vida é sagrada e inviolável sob qualquer circunstância? O que é vida, ou melhor, como as pessoas podem compreender o que é uma vida boa? A partir da

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definição do que é vida boa, teriam as pessoas autonomia para morrer? A liberdade que hoje temos de revolver abertamente um tema tão áspero pressupõe uma compreensão histórica, filosófica e propriamente jurídica da construção dos limites e das possibilidades de exercício das nossas liberdades enquanto indivíduos que coexistem em uma rede de interdependência e interlocução.

Em cada momento da história, especificamente a ocidental, o indivíduo humano teve ou lhe foi imposta concepções de moralidade que se entrelaçam em uma continuidade espacial e temporal, a constituir o multifacetado e controverso entendimento acerca do termo autonomia.

No medievo, o esforço do cristianismo em proporcionar a interiorização do indivíduo humano, implicou no reconhecimento de uma substância humana que vai além daquilo que se apresenta para o exterior, mas que alcança potencialidades que permitem contato com o sagrado: “para lá do olho exterior e do ouvido exterior há o olho interior e o ouvido interior”, que são capazes de perceberem “a visão divina, a palavra e o rumor do mundo mais real: o das verdades eternas.”3

Sob esta perspectiva, a igreja católica assumiu uma posição de domínio na condução da vida social4, já que a todos impôs, por meio da sua autoridade, um conceito de moralidade pautado em um modelo de vida boa por ela firmemente definido. Ao mesmo tempo em que abria as possibilidades para o reconhecimento da interioridade, ainda que para o pecado, fechava todas essas possibilidades pela obediência devida a Deus e às suas leis, graças à moralidade conduzida pela obediência5.

Com o declínio do domínio moral da igreja, ou o seu esfacelamento no contexto político e social, tornou-se possível ao indivíduo humano assumir uma postura de autodeterminação que dispensa interferências exteriores, inclusive para assumir configurações de uma vida que lhe é própria, pois “no reino espi-ritual, cada pessoa deve ser salva como um indivíduo. Nenhuma mediação meramente humana pode ser um substituto para a aceitação direta de Deus.”6Para Charles Taylor, é a importância atribuída ao fiel que possibilita esta nova forma

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de encarar a religiosidade, haja vista que “a pessoa já não pertencia ao círculo dos eleitos, ao povo de Deus, por sua ligação a uma ordem mais abrangente que sustentava a vida sacramental, mas por sua adesão pessoal irrestrita.”7Se a concepção medieval de autonomia apontava para a moralidade pautada na obediência, a moralidade moderna desponta, reconhecendo a liberdade de pessoas iguais, capazes de enxergarem por si mesmas o que a moralidade requer, ademais, as pessoas são “em princípio igualmente capazes de [...] mover para agir de maneira adequada, independente das ameaças ou recompensas dos outros.”8

Acentuada a ideia de liberdade, a independência da pessoa e a sua capacidade racional acirram o seu desenvolvimento enquanto ser capaz de tomar, sozinho, as suas próprias decisões e posicionar-se no mundo social, a partir de si mesmo.

A concepção da moralidade como autogoverno pressupunha a existência de uma ordem moral gerada a partir do indivíduo humano em seu espaço de convivência social. Porém, embora reconhecida a sua capacidade em se autogovernar, o homem era visto e tratado como propenso ao conflito, sendo-lhe, pois, deter-minada uma orientação moral possibilitadora da convivência social e consequente exercício de liberdades.

O amadurecer da modernidade colocou o homem no centro das problemáticas existenciais e introduziu o conceito de autonomia como foco central das especulações teóricas. Sobretudo a partir da filosofia kantiana, a autonomia é destacada e introduzida na reflexão filosófica e consequentemente movida ao discurso jurídico. Este diferencial está no fato de, na filosofia kantiana, o homem não ser determinado pela existência e conteúdo da moralidade exterior a ele9, de modo que a inserção da orientação moral no próprio indivíduo faz com que a ideia de autogoverno, até então vigente, transmute-se para a ideia de autonomia. De acordo com Manfredo Araújo de Oliveira, autonomia, na reflexão kantiana, significa “a capacidade e a tarefa que caracteriza o homem como homem, ou seja, de autodeterminar-se e de autoconstruir-se em acordo com as regras de sua própria razão”.10

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Não obstante a reviravolta copernicana promovida pela filosofia kantiana é preciso salientar que, como bem advertiu Manfredo Araújo de Oliveira, a ética kantiana não está preocupada em estabelecer normas para o agir humano, “mas em ‘fundamentar um princípio moral’ no sentido de uma regra suprema de discernimento e julgamento para o agir ético dos homens.”11A filosofia kantiana acaba por realçar a posição do homem e redefinir o ponto de partida da filosofia transcendental, reconhecendo na moralidade “uma lei que obriga, independentemente dos objetivos de alguém”.12Crítico de tal perspectiva, Hegel assume uma nova postura filosófica, por meio da qual se abandona a ideia de a priori, de separação entre sujeito e objeto e de liberdade dada. Em Hegel, a liberdade deixa de ser considerada como algo dado e passa a ser vista como algo construído, que parte da subjetividade (moralidade subjetiva) e encontra-se em um contexto de intersubjetividade (eticidade). É a afirmação e assunção da alteridade, como pressuposto da possibilidade da pessoa construir sua auto-identidade. Hegel, de forma alguma, destrói ou mitiga a individualidade, muito pelo contrário; o que ele busca é reconhecer a existência da individualidade (parte) em um contexto de relações intersubjetivas (todo), de forma que a pessoa se faz pessoa por meio de um processo relacional (é a uni-dade!) e, neste, ela pode encontrar limites, postos pelo próprio Direito, contra os quais, inclusive, pode se rebelar (e isto é a prova da vontade livre)13.

Com isso, verifica-se a possibilidade de as pessoas assumirem as coordenadas de uma pessoalidade em um contexto de unidade, que não decorre de uma liberdade dada, mas sim, construída em uma rede de relações, que permitem com que as outras pessoas, em iguais liberdades, também construam a própria identidade.

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Assumir a pessoa como uma realidade relacional-processual implica em reinterpretar vários conceitos apropriados pelo Direito, a começar pelo que se compreende por autonomia. Em um contexto dialético de convivência no qual as pessoas devem ter a liberdade para se autoconstituirem e, em consequência, atribuírem conteúdo ao que se denomina vida boa, não mais se pode pensar em autonomia como obediência ou autogoverno, nem mesmo predeterminar uma concepção universal de vida boa. Afirmar-se enquanto pessoa pelo exercício da liberdade com o outro e contra o outro implica assumir a existência de uma sociedade pluralista, que não determina e impõe um projeto de “vida--boa”, mas que reconhece a possibilidade de construção de variados projetos de “vidas-boas”.

2 O direito como instrumento de efetivação da autonomia

Se o projeto de uma sociedade contemporânea que se denomina democrática é se afirmar pluralista14e, em consequência, possibilitar a construção de variados projetos de “vidas-boas”, necessário tecer linhas gerais acerca da hermenêutica jurídica contemporânea capaz de efetivar o livre exercício da autonomia, dora-vante denominada autonomia privada.

De início, importante rechaçar os projetos hermenêuticos que tendem a atribuir concepção axiológica ao Direito. Não nos referimos às possibilidades do discurso valorativo que se dá no processo de elaboração da norma jurídica perante o poder legislativo, mas no processo de aplicação, por meio do qual o julgador é chamado para realizar o Direito em um processo jurisdicional.

Diferentemente dos valores que podem ser ponderados diante de uma situação concreta e que em um contexto moral poderia justificar uma interferência filantrópica, as normas jurídicas devem ser construídas diante de um caso concreto, sem que os valores, sobretudo do julgador, venham a predeterminá-las. Se estamos a buscar a efetivação de uma sociedade pluralista, na qual o exercício da autonomia privada é um propósito, o único valor que poderia conduzir o processo hermenêutico de realização do Direito é o do próprio indivíduo que está

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a reclamar a efetivação de algo. Assim, se para o Direito a pretensão buscada é possível de ser acolhida, é isso o que basta.

É certo que normas válidas obrigam seus destinatários a um determinado comportamento. Valores, por sua vez, têm sentido teleológico, determinando relações de pre ferência, mostrando que alguns bens são mais atrativos que outros. Segundo Jürgen Habermas:

Normas e valores distinguem-se respectivamente, em primeiro lugar, por suas referências ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, pela codificação respectivamente binária ou gradual de suas pretensões de vali dade; em terceiro lugar, por sua obrigatoriedade respectivamente absoluta ou relativa; e, em quarto lugar, pelos critérios aos quais o conjunto de sistema de normas ou valores deve satisfazer. Por se distinguirem segundo essas qualidades lógicas, eles não podem ser aplicados da mesma maneira.15O pensamento de Habermas, portanto, reside no fato de que normas ou são válidas ou inválidas, ao passo que valores podem ser escalonados, de acordo com a...

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