Estudo comparativo de cláusulas especiais do contrato de trabalho desportivo do praticante profi ssional de futebol sob a luz do Direito Português e do Direito Brasileiro

AutorGlener Pimenta Stroppa
Páginas97-128

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1. Introdução

Os espetáculos públicos têm como origem as apresentações religiosas, podendo ser citados como exemplos as festas dos fenícios, os grandes espetáculos existentes na Grécia antiga, bem como as lutas de gladiadores que por muito tempo reinaram em Roma. Segundo Alice Monteiro de Barros2, "o espetáculo é, em geral, uma exibição artística ou esportiva oferecida de forma sugestiva ao público, de modo a despertar-lhe vários tipos de sentimentos".

E, sendo uma espécie do gênero "espetáculo", o esporte surge como fator de divertimento e sociabilização, em um primeiro momento para, posteriormente, transformar-se também em uma importante fonte de trabalho, a ponto de Américo Plá Rodriguez3 afirmar que "o trabalho surge quando aparece o esporte espetáculo", demonstrando o quanto é importante o esporte nos dias atuais, sendo fonte de renda para milhares de pessoas envolvidas (desde o próprio atleta até os profissionais que laboram ao redor da prática esportiva como agentes, repórteres, seguranças de estádios, etc.) necessitando, deste modo, de uma atenção especial dos ordenamentos jurídicos contemporâneos.

Neste cenário, o contrato de trabalho desportivo foi o assunto eleito para análise, não somente por se tratar de tema empolgante, repleto de peculiaridades, mas também pela sua atualidade e fascínio que o mundo do esporte exerce sobre a quase totalidade das pessoas como, de fato, exercera também na antiguidade.

E com razão. O esporte, de uma maneira geral, faz parte do cotidiano das pessoas, a ponto de assistirmos, em cada lugar, discussões por vezes acaloradas sobre os resultados da rodada esportiva, bem como sobre opiniões de como referida agremiação desportiva deveria ter atuado, tanto quanto na escalação, como no esquema adotado por um determinado técnico desportivo.

Segundo Umberto Eco4, o complexo fenômeno desportivo compõe-se de três partes: o desporto praticado (ou a prática desportiva), o desporto observado (o "voyeurismo" desportivo) e o desporto comentado (o falatório desportivo). Ao comentar o fenômeno acima, João Leal Amado5 observa que "Trata-se mesmo, em certo sentido, de uma nova forma de religião (a religião dos nossos tempos, supostamente secularizados) e, independentemente dos juízos de valor que se formulem - do "desporto-escola de virtudes" ao "desporto-ópio do povo", do "desporto é cultura" ao

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"desporto-é-guerra", do "desporto-educação" ao desporto-alienação", do "desporto-patriotismo" ao desporto-chauvinismo" -, o certo é que, na atual civilização do espetáculo, da informação e dos lazeres, a sua importância não tem paralelo".

Aliado a este fato, ou seja, à universal popularização das atividades desportivas, independentemente do prisma a ser encarado, acorde lição de Umberto Eco, existem ainda aspectos jurídicos instigantes da relação do desportista profissional com os clubes, seus empregadores, uma vez que já ultrapassada a fase de um desportista profissional não poder ser considerado um trabalhador6. Aspectos jurídicos esses que envolvem várias questões, tais como a possibilidade, ou não, de existirem cláusulas de indenização de transferência nos contratos de trabalho desportivos, a livre circulação dos atletas nos Estados-membros entre o fim de um contrato e o início de um novo contrato de trabalho, a liberdade de trabalho do atleta profissional, a (in)constitucionalidade de dispositivos legais insertos na legislação específica enfim, uma série de questões de grande relevo e alta indagação jurídica.

Foi exatamente com essas questões que se preocupou o presente trabalho, ou seja, em analisar a relação jurídica vivenciada pelos atletas profissionais com seus empregadores e o conteúdo dos respectivos contratos de trabalho, notadamente quanto aos futebolistas, especialmente quando da rescisão contratual, no que diz respeito às indenizações devidas, bem como com relação à legalidade das cláusulas de opção e com a possibilidade de existir, contratualmente, as denominadas indenizações de transferências.

Abordaremos, paralelamente, a evolução legal sobre o trabalho esportivo em Portugal e no Brasil, seus conceitos e qualificações contratuais, bem como a comparação normativa quanto a determinados conteúdos importantes do contrato de trabalho desportivo, especial-mente no que se refere às cláusulas de rescisão, de opção, às indenizações de transferência, à remuneração e ao direito de imagem.

Saliente-se, por oportuno, que o aluno é brasileiro e a redação deste trabalho levará em conta o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, celebrado na cidade de Lisboa, em 16 de dezembro de 1990, restando preservadas a grafia original das disposições legais e transcrições que vierem a ser feitas da jurisprudência e doutrina.

2. Evolução legislativa - Portugal

Uma legislação específica, a fim de regular a relação dos atletas profissionais, tardou a ser promulgada. A primeira legislação específica em Portugal, a regular a atividade de praticantes de desporto, veio ao mundo jurídico em 30.5.1960, por meio da Lei n. 2.104/60, estabelecendo bases para a classificação dos praticantes em amadores, não amadores e profissionais. Eram considerados amadores os praticantes que não recebiam remuneração pela prática desportiva e nem auferiam, direta ou indiretamente, qualquer proveito material em razão desta prática; já os praticantes desportivos não amadores eram aqueles que, embora não fazendo da prática desportiva sua profissão, recebiam em decorrência de referida prática apenas pequenas compensações materiais, fixadas de forma unilateral pelas organizações desportivas que representavam; e, como profissionais, eram considerados aqueles praticantes desportivos que eram remunerados pela sua atividade desportiva. A essa altura, por

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determinação legal, os praticantes profissionais e não amadores somente poderiam participar das modalidades de futebol, ciclismo e pugilismo, sendo a prática das demais modalidades desportivas proibida para essas categorias. Estabelecia ainda referida legislação que os acordos celebrados com os praticantes desportivos profissionais deveriam ser reduzidos a termo e registrado nas respectivas federações, devendo constar ainda o prazo de duração e a remuneração. A Lei n. 2.104/60 vigorou até 13.1.1990, quando então fora revogada pelo art. 43º da Lei n. 1/90, denominada Lei de Bases do Sistema Desportivo. Somente em 1995 pelo do Decreto-lei n. 305/95 (referido diploma legal procura proceder à adaptação do regime jurídico laboral comum às particularidades do trabalho desportivo), é que surgiu no cenário jurídico português uma normatização própria, estabelecendo o regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo, bem como estabelecendo a disciplina do contrato de formação esportiva. A doutrina7 já criticava esse vazio legislativo sendo que João Leal Amado8 chamava a atenção para dois importantes fatores configuradores do atraso legislativo: o fato de a Lei n. 1/90 determinar, em seu art. 41º, o prazo de dois anos para que o Governo regulamentasse, via Decreto-lei, a Lei de Bases do Sistema Desportivo no que dizia respeito ao regime contratual dos praticantes desportivos profissionais (sendo que essa regulamentação somente veio ao mundo jurídico cinco anos depois, ou seja, em 1995), bem como o fato de que os países vizinhos, tais como Espanha e Itália, já haviam promulgado as respectivas legislações desportivas, encontrando-se Portugal, neste cenário, em descompasso com as nações vizinhas.

Uma vez promulgada a lei, preocupou-se sobremaneira o legislador em resolver o problema das chamadas indenizações de transferência, figura esta fortemente enraizada nos meios desportivos e prevista em regulamentos federativos, instituto jurídico este que será analisado oportunamente, em tópico específico do presente trabalho.

O Decreto-lei n. 305/95 consagrou o princípio da liberdade de trabalho, por meio do art. 22º/1, no entanto, de forma paradoxal, admitiu expressamente a figura da indenização de transferência, como se observa do art. 22º/2.

Posteriormente, veio ao cenário jurídico a Lei n. 28/98, estabelecendo um novo regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de formação desportiva, revogando o Decreto-lei n. 305/95, sendo esta a legislação em vigor até hoje.

Segundo muito bem pontuou João Leal Amado9, são três as novidades mais importantes trazidas pela Lei n. 28/98, além de outras10 de menor importância: 1 - normatização da atividade dos empresários desportivos (art. 22º a 25º): só poderão exercer atividade de empresário desportivo as pessoas devidamente autorizadas pelas entidades desportivas competentes, devendo esses empresários registrar-se como tal junto à federação desportiva; 2 - expressa referência à arbitragem como forma

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de solucionar confiitos de natureza laboral oriundos da relação contratual (art. 30º); e 3 - elevação do limite máximo de duração do contrato que agora passa a ser de oito épocas, superior ao regime anterior do Decreto-lei n. 305/95, que era de quatro épocas (arts. 8º/1 e 9º).

2.1. Evolução legislativa - Brasil

A primeira legislação existente no Brasil sobre o desporto remonta ao ano de 1941, quando fora editado o Decreto-lei n. 3.199, de 14.4.1941. Por meio de referido diploma legal, o governo brasileiro passou a intervir diretamente no esporte, criando as bases organizacionais em...

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