O esvaziamento do texto e o controle das decisoes juridicas/The emptying of the text and the control of legal decisions.

AutorAdeodato, João Maurício

Sumário: 1. Evento, significante e significado: distinção e origens no ceticismo pirrônico. 2. Termos gerais e fenômenos individuais. 3. Circunstancialidade do discurso. 4. Instituições como controle público da linguagem.

  1. Evento, significante e significado: distinção e origens no ceticismo pirrônico

    Sobre o poder da linguagem já disse Friedrich Nietzsche:

    O Direito senhorial de atribuir nomes vai tão longe que dever-se-ia permitir conceber a origem da própria linguagem como expressão de poder dos dominadores: eles dizem "isso é isso e isso", eles selam qualquer coisa e acontecimento com um sinal fonético e, por seu intermédio, como que tomam posse dele. (1) Contemporaneamente, correntes importantes da linguística, por vezes sem citar Nietzsche, defendem a tese de que a linguagem não há que ser entendida simplesmente como um sistema de palavras, frases e períodos que comunicam significados, numa espécie de construção autônoma, mas constitui um "discurso", definido como uma forma de ação e daí uma via para exercício do poder. (2)

    Essa visão sociológica do discurso por vezes leva a uma confusão entre linguagem e eventos reais, quando se define o texto como um evento comunicativo em que estão presentes os elementos linguísticos, visuais e sonoros, os fatores cognitivos e sociais etc., com O objetivo de realçar que os significados de um texto dependem de dados culturais. (3) O texto é efetivamente um produto desses fatores empíricos, contudo, após ser produzido, não é ele mesmo um evento, pois a escrita o abstrai da pressão do aqui e agora na comunicação. Os significados das palavras e textos também vão depender dos elementos eventuais, sim, mas tampouco se confundem com eles, conforme será discutido adiante.

    O evento é acontecimento individualizado, único, que jamais se repete, definição que inclui também o que se convencionou chamar "objetos", pois estes são tão-somente eventos cujas mudanças contínuas as pessoas não conseguem perceber com seus órgãos dos sentidos, tais como a troca de moléculas com o ambiente. Daí a metáfora ob-jeto, "adiante colocado", como se estivesse imóvel e acabado perante o sujeito cognoscente. Da mesma maneira o "fato", aquilo que foi realizado, feito, como uma fotografia imutável de um ato passado.

    Ocorre que uma das facetas dos eventos é que não podem ser adequadamente conhecidos pela mente humana, característica que já foi chamada de "irracionalidade do individual" (4), pois a mente humana só consegue lidar com termos gerais. Dessa característica antropológica nasceram as ideias de Platão, as essências da Escolástica, os conceitos de Kant e incontáveis explicações filosóficas. Todas sempre tendo que enfrentar a questão de que, segundo revela a percepção sensível, o mundo real muda continuamente numa sucessão de eventos--o "rio" na metáfora de Heráclito--em que pese às construções estabilizadoras de objetos e fatos pela "razão". (5)

    Entre os seres humanos toda comunicação--e também todo conhecimento--necessita de significantes, substratos físicos que exprimem uma linguagem empiricamente percebida. O texto da lei e o quadro do pintor constituem significantes, assim como a própria conduta humana é composta desses suportes físicos, sejam eles gestuais, textuais, pictóricos, orais. O ato presente de comunicar-se é um evento, é certo, mas a linguagem não se compõe apenas de significantes eventuais como este texto, esse gesto ou aquela fala, mas de uma relação inseparável entre significantes e significados considerados abstratamente, isto é, sem relação imediata com os eventos.

    Aqui se entende o significado como essa abstração da razão humana, uma palavra que quer unificar aquilo que os filósofos têm chamado de ideia, forma, essência, conceito, eidos... Um exemplo simples para compreender a diferença entre significados e significantes é a diferença entre números e algarismos, isto é, textos que expressam números: 2, II, two, dos, dva, [phrase omitted] (Liãng) são diferentes algarismos significantes que expressam a mesma ideia significada, no caso o número dois, o qual não existe no mundo real dos eventos nem pode ser escrito, filmado ou desenhado.

    O significante cristaliza o significado, tenta imobilizá-lo; o senso comum e algumas correntes filosóficas acreditam que consegue, mas a análise retórica mostra que os significantes são como oráculos de significados para inevitáveis interpretações. O evento é um dado de experiência único, por isso inapreensível, incognoscível em sua inteireza. O significante é um substrato físico, a parte empírica da linguagem. Quando se refere aqui "texto" como expressão simbólica de uma ideia e um dos três elementos do abismo do conhecimento, ele não deve ser confundido com o evento, pois não se trata desse sentido de texto como evento-objeto, como "este" ou "aquele" texto contido no livro a ou b, com seu número único de elétrons.

    Claro que o exemplar da Constituição Federal que está na biblioteca da Faculdade de Direito do Recife não é o mesmo que está na biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, são eventos únicos e distintos, "objetos", cada um deles contém diferentes impressões digitais e sua quantidade de moléculas tampouco é a mesma. São eventos-coisas, eventos-objetos. Mas o texto é o significante que ambos aqueles exemplares têm em comum e isso não é um evento, pois os textos dos exemplares da Constituição são os mesmos e não há igualdade no mundo real dos eventos. Os textos são estratégias linguísticas de abstrair e apreender significados.

    Desse ponto decorre outra notável distinção que impede a identificação entre evento e texto: como condição da comunicação, a linguagem, da qual o texto é uma das formas de manifestação, à semelhança dos significados ideais, é também genérica. E todo evento é único.

    Isso dificulta o processo de conhecimento para além do que discutiram empiristas e racionalistas ao longo dos séculos, pois não apenas os eventos e as ideias são inadequados um ao outro, mas também os relatos linguísticos sobre eles não correspondem aos eventos nem às ideias. Como uma necessidade antropológica, contudo, o ser humano precisa de algum modo reunir esses três elementos e assim "conhecer". O resultado dessa tarefa hermenêutica, tanto subjetiva, pessoal, interna, quanto intersubjetiva, interpessoal, externa, é o conhecimento do mundo empírico, construído linguisticamente por significados de significantes diante de eventos. Aquilo que o senso comum inconscientemente chama de "realidade".

    O tradicional apego aos "fatos" é enfraquecido. Se uma pessoa refletir sobre quais dados, dentro do conjunto de informações que compõe o seu "conhecimento", seu saber, são resultantes de sua vivência empírica ou sensível (dados obtidos por meio de visão, audição, olfato, paladar e tato), vai verificar que se trata de uma proporção ínfima. A imensa maioria dos dados que alguém obtém ao longo da vida provém de relatos de terceiros, é o conhecimento "por ouvir dizer". Essas narrativas sobre como o mundo foi, é ou mesmo vai ser constituem a bolha humana de discursos e variam muito no tempo e no espaço.

    As poucas informações oriundas da observação de dados empíricos concretos tampouco são dignas de crédito e dependem da percepção de cada ser humano. Os dados resultantes de observação empírica nunca são absolutamente confiáveis, a crer nos empiristas, assim como a própria relação de causa e efeito. (6)

    Em outras palavras, ainda que o conhecimento empírico, aquele do mundo dos eventos, fosse inteiramente digno de crédito--preconceito do senso comum que a teoria do conhecimento há séculos mostra que não procede--a grande maioria das informações que constitui o "espírito" ou a personalidade de um ser humano ou grupo social é oriunda de narrativas transmitidas por outros seres humanos e assim sem nenhum grau de certeza ou evidência. A própria memória, como é pensamento, constitui-se de autorrelatos que a pessoa seleciona em detrimento de outros que são esquecidos. O relato é a solução temporária para conhecer no círculo hermenêutico de significantes e significados linguísticos diante de eventos reais.

    Essa distinção entre significantes e significados encontra uma formulação influente na obra de Ferdinand de Saussure, contudo suas origens são muito mais antigas e a suposta novidade da virada linguística, neste ponto, talvez provenha de falta de acesso e daí de alguma ignorância sobre a filosofia antiga. É impressionante como teses recentes da teoria da linguagem e da hermenêutica jurídica já eram de total conhecimento dos antigos.

    Uma das teses do médico e filósofo helenista Sextus Empiricus é chamar atenção para o grau de arbitrariedade das classificações gramaticais, as quais, por abstração, precisam tratar eventos únicos, individuais, por meio de conceitos genéricos que não existem na realidade. Com base na tese de Protágoras, de que "o homem é a medida de todas as coisas", ele adere à posição de Hermógenes, adversário de Sócrates no diálogo Crátilo, e afirma que não há essência nos nomes e assim nenhum nome é mais apropriado do que outro: "Para mim, seja qual for o nome que se dê a uma (sic) determinada coisa, esse é o seu nome certo; e mais: se substituirmos esse nome por outro, vindo a cair em desuso o primitivo, o novo nome não é menos certo do que o primeiro". (7)

    Isso leva à impossibilidade, por exemplo, de reconhecer a existência de uma "entidade" como a sílaba. A discricionariedade de critérios para determinar o que é uma vogal ou uma sílaba desemboca na dificuldade de delimitar o próprio conceito de língua, pois não é evidente a distinção se comparados o latim e o português, por exemplo, diante de situações limítrofes (que características fazem aquela língua deixar de ser latim e passar a ser português...). Saussure admite que o critério para separar as línguas é uma linha imaginária, uma delimitação arbitrária e convencional, pois o espectro em que um conceito termina e outro começa não toma por base qualquer...

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