Ética E Humanismo Na Carta Cidadã

AutorJosé Renato Nalini
Ocupação do AutorDesembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Presidente da Academia Paulista de Letras
Páginas197-218
ÉTICA E HUMANISMO NA CARTA CIDADÃ
José Renato Nalini*
Sumário: 1. O que é o humanismo?; 2. A Constituição e o humanismo;
3. A ética cívica da Carta cidadã; 4. A democracia participativa; 5. Educar-
se para a democracia; 6. Como participar?; 7. Trilhar a ética humanista.
1. O que é o humanismo?
A aparente singeleza da expressão comporta digressão ao infinito. O
tema sempre ocupou a mente de pensadores afeitos à reflexão profunda.
Heidegger, por exemplo, chegou a escrever uma Carta sobre o Humanismo,
na qual procura devolver um sentido à palavra humanismo.
Ocorre com o verbete humanismo o mesmo fenômeno constatável
em relação a inúmeros outros. A reiteração os trivializa. O significado
pode percorrer vias tortuosas, de acordo com o contexto em que é pro-
nunciado e consoante a condição do emissor. Missão relevante, embora
complexa, aquela de “trazer os seres humanos de novo à sua essência”, como
propõe Martin Heidegger1. Ou, textualmente, “Que outra coisa poderá sig-
nificar, do que o fato de os seres humanos deverem tornar-se humanos? Na
verdade, a versão da humanidade é uma presunção deste pensamento. Porque
isto é o humanismo: fazer sentido e ter cuidado; que os seres humanos devam
ser humanos e não inumanos, ou seja, fora da sua essência. E contudo, em que
consiste esta humanidade dos seres humanos? Na sua essência”2.
O raciocínio heideggeriano parte da constatação de que o que é ser-se
humano foi obscurecido como questão, ante a disseminação de múltiplas
* Des embargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Pr esidente da Academia Paulis-
ta de Letras.
1 HODGE, Joanna, Heidegger e a Ética, Instituto Piaget, L isboa, 1998, p. 140.
2 Wegmarken, citado por HODGE, Joanna, op.cit ., idem, ibidem.
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versões do humanismo. Todas as escolas e todas as pessoas se propõem
a definir humanismo. Citem-se, aleatoriamente, o cristianismo, o idealis-
mo alemão e o romantismo.
Para o cristianismo, a história dos seres humanos adquire a dimen-
são da história da salvação. A criatura humana, criada à imagem e seme-
lhança divina, destina-se à transcendência. O mundo cristão é concebido
à fisionomia platônica de peregrinação, transitoriedade rumo ao verda-
deiro lar da Humanidade, que é o além.
Os Romanos desenvolveram o sentido de humanitas para distinguir o
nacional dos bárbaros. Todavia, a História da Humanidade registra outras
exclusões: as mulheres, os escravos, as minorias, os diferentes. Situação
que ainda não desapareceu de todo, pese embora a intensidade das pro-
clamações em contrário. Será que todas as pessoas estão – verdadeira-
mente – incluídas no Estatuto humano em sua plenitude?
Continua válida e atual a ideia de Heidegger: “Todavia, se entendermos
o humanismo em geral como sendo uma tentativa de tornar os seres humanos
livres para a sua humanidade e assim descobrirem o seu valor, então o huma-
nismo é diferente, dependendo das concepções de ‘liberdade’ e ‘natureza’ dos
seres humanos. Similarmente, as maneiras de alcançar esta liberdade variam”3.
A atribuição do humanismo é tornar o homem mais humano. Como se
pode perseguir tal meta, eis que alcançá-la reside no terreno da utopia?
2. A Constituição e o humanismo
Uma Constituição representa a tentativa de tornar os seres humanos
livres para a sua Humanidade e assim descobrir o seu valor?
Seguramente, pode-se responder de maneira afirmativa. O pacto
republicano promulgado em 5 de outubro de 1989 marca um diferen-
cial evidente no ordenamento brasileiro. É resposta elaborada por uma
nacionalidade que já não suportava o autoritarismo, acompanhava a re-
conquista democrática em países cuja intimidade cultural permitia inces-
sante simbiose e adotou como princípio inspirador a dignidade da pessoa
humana.
Até a topografia dos princípios fundamentais e a enunciação dos
chamados direitos humanos evidencia esse compromisso com a formulação
3 Wegmarken, mesma fonte, op.cit., idem, p. 142/143.

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