Ética, moral e direito: o princípio da confiança no direito das famílias brasileiro

AutorLuiz Carlos Goiabeira Rosa/Marcus Vinícius Ribeiro Cunha
Páginas103-127

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Ver Nota12

1. Introdução

No decorrer de seu progresso, a sociedade conceituou e delineou a família sob diversas formas e mediante diferentes paradigmas. Conforme o momento histó-rico, o núcleo familiar prestava-se ora ao culto aos deuses, ora à perpetuação da linhagem, ora à aquisição e manutenção do patrimônio, entre outros.

O alçamento do princípio da dignidade humana ao status constitucional revolucionou o conceito de família, substituindo o paradigma patrimonial pelo antropocêntrico e assim adotando uma ética humanística ao invés da lógica materialista na abordagem do conceito de entidade familiar. Nesse contexto, como se garantir a eticidade nas relações familiares à luz da nova hermenêutica vigente?

Para a respectiva resposta à questão apresentada, inicia-se a presente investigação com uma abordagem sintética sobre Ética, Moral e Direito, apresentando as principais teorias que buscaram avaliar essa temática, inclusive com propostas de aproximação entre os sistemas jurídico e moral. A seguir, far-se-á a abordagem das distinções entre regras, princípios e postulados normativos, culminando-se na mostra da importância dos princípios no sistema jurídico enquanto normas carregadas de conteúdo ético. Nessa perspectiva, também se estudará o princípio da confiança no âmbito do direito das famílias brasileiro, analisando sua manifestação como princípio da boa-fé objetiva nas questões patrimoniais, bem como sua materialização nas relações existenciais por meio da tutela da afetividade.

Para tanto, como metodologia será empregado o tipo de pesquisa bibliográfico e método dedutivo, partindo-se da discussão genérica entre Direito e Moral e se concluindo na análise da família na moderna compreensão de Ética. Valer-se-á, outrossim, de análise textual, temática e interpretativa de obras e publicações sobre o tema, tais como livros, jurisprudência e outros mais.

2. Ética, moral e direito: brevidades

Etimologicamente, “ética” deriva da palavra ethos. Entretanto, cumpre observar que tal palavra grega possui originariamente duas grafias ? ???? (êthos) e ???? (éthos) – e significados diversos, dentre os quais Aristóteles usou em “Ética a Nicômaco” a expressão êthos no sentido de “modo de ser” ou “caráter”. A propósito, Antônio Macena Figueiredo e Dirce Guilhem ressaltam:

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Interessa o caráter em seu sentido estritamente moral, isto é, a disposição fundamental de uma pessoa diante da vida, seu modo de ser estável do ponto de vista dos hábitos morais (disposição, atitudes, virtudes e vícios) que a marcam – que caracterizam – e lhe conferem a índole peculiar que a distingue dos demais. Refere-se ao conjunto das qualidades, boas ou más, de um indivíduo, resultante do progressivo exercício na vida coletiva. [...] Esse modo de ser, “apresenta uma dupla dimensão de permanência e de dinamismo. O núcleo de nossa identidade pessoal é o produto das opções morais que vamos fazendo em nossa biografia. Essas opções vão conformando nossa fisionomia moral – a classe de pessoas que somos, nossa índole moral –, ou seja, a disposição para nos deixar mover por uns motivos e não por outros”.3Inobstante, sobreleva-se também a expressão éthos com o significado de hábito, costume, tradição. Também esta variante é de interesse da Ética, na medida em que é repetição de atos aceitos pela sociedade que consolida um costume ou uma tradição.

Assim, a ideia oriunda da junção de êthos enquanto caráter e éthos enquanto hábito/costume/tradição permitiria compreender o cerne da ética: esta seria uma ciência que investigaria os atos morais habituais que configurariam o caráter social de normalidade. Dessume-se, então, que ética seria uma teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade4ou, posto de outra forma:

[...] ética pode ser entendida como a ciência da reta ordenação dos atos humanos desde os últimos princípios da razão (kathein). [...] a “ética” se ocupa da reflexão filosófica sobre a conduta humana sob o prisma dos atos morais. Ela vai examinar a natureza dos valores morais e a possibilidade de justificar seu uso na apreciação e na orientação de nossas ações, nas nossas vidas e nas nossas instituições. A ética estuda as relações entre o indivíduo e o contexto em que está situação. Ou seja, entre o que é individualizado e o mundo a sua volta [mundo moral]. Procura enunciar e explicar as regras [sobre se fundamenta a ação humana ou razão pela qual se deve fazer algo], normas, leis e princípios que regem os fenômenos éticos. São fenômenos éticos todos os acontecimentos que ocorrem nas relações entre o indivíduo e o seu contexto.5

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Marilena Chauí bem sintetiza:

A filosofia moral ou a disciplina denominada a ética nasce quando se passa a indagar o que são, de onde vêm e o que valem os costumes. [...] A filosofia moral ou a ética nasce quando, além das questões sobre os costumes, também se busca compreender o caráter de cada pessoa, isto é, o senso moral e a consciência moral individuais.6Por sua vez, “Moral” deriva do latim mos, que significava tanto “costume” quanto “caráter”, visto que a expressão ora mencionada era usada como equivalente latino tanto de êthos como de éthos. Não sem motivo, costumam-se adotar as expressões Moral e Ética como se sinônimas fossem; fato é que moral e ética guardam conceitos diferentes entre si apesar de possuírem íntima relação.

Nesse sentido, Antônio Macena Figueiredo bem explica:

No latim não existia uma palavra para traduzir o êthos, nem tampouco outra para representar o sentido do termo éthos, dado na língua grega. Então, na essência, esta distinção foi perdida. Ambas foram traduzidas por “mos” ou “mores” (plural de mos, do qual vem o termo moralis), pois era a palavra que mais se aproximava do sentido de ethos, que nessa língua pode significar tanto “costumes” como “caráter” ou gênero de vida.7Assim, pode-se dizer que, ao englobar e associar caráter e costumes, a Moral consubstancia-se no conjunto de valores aceitos costumeiramente e eleitos pela sociedade como paradigmas de conduta do indivíduo perante seus semelhantes: um comportamento desenvolvido dentro dos parâmetros de normalidade balizados pelos valores sociais é aceitável pela sociedade e, portanto, considerado moral. Ato contínuo, a moral concerne tanto aos costumes quanto às normas de comportamento aceitas pela sociedade conforme a tradição ou realidade cultural; seria um sistema normativo-principiológico-valorativo aceito livremente pelos membros da sociedade, em que as normas seriam dotadas de um caráter histórico e social.

Posto de outra forma:

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Moral é o que se refere aos usos, costumes, hábitos e habitualidades. De uma certa forma, ambos os vocábulos se referem a duas idéias diferentes, mas relacionadas entre si: os costumes dizem respeito aos fatos vividos, ao que é sensível e registrado no acervo do grupo social como prática habitual. A idéia contida na moral é a relação abstrata que comanda e dirige o fato, o ato, a ação ou o procedimento. A moral explica e é explicada pelos costumes. A moral pretende enunciar as regras, normas e leis que regem, causam e determinam os costumes, inclusive, muitas vezes, anunciando-lhes as consequências.8

Frise-se que a moral não possui o atributo da imperatividade e, por isso, seus preceitos são voluntariamente seguidos: seguem-se preceitos morais se tais forem entendidos como valores subjetivos necessários à satisfação de uma necessidade ou anseio individual. Com efeito, os valores morais situam-se na consciência individual e, ainda que haja uma “consciência coletiva” conforme entendem alguns autores, cabe ao indivíduo julgar o certo ou errado, tolerável ou intolerável segundo suas convicções.

Contudo, cediço é que a sociedade necessita de regras perenes que, no objetivo de se manter a paz e ordem sociais, regulem a conduta do particular. Nesse sentido, sobressai-se o Direito enquanto sistema de normas de caráter imperativo e coercitivo que dispõem sobre condutas consideradas imprescindíveis à normali-dade da vida social e, por isso, de respeito e cumprimento obrigatórios independentemente da vontade do particular.

Destarte, em apertada síntese, “moral” é o conjunto de regras de comportamento costumeiramente adotado como válido pela sociedade e respeitado livremente pelo indivíduo, por questões de foro íntimo; “direito” é o sistema de normas de comportamento dotadas de imperatividade e coerção, de forma a obrigar o indivíduo a se comportar de modo útil ou não nocivo à paz e ordem sociais; e “ética” perfaz-se na investigação e reflexão filosóficas sobre os fundamentos da validade de tais regras e a atinente comparação com outras “morais” e “direitos” de sociedades diferentes, de forma a buscar e compreender justificativas para as regras propostas pela moral e pelo direito.

Nesse mister, importa verificar-se a íntima relação entre Direito e Moral apesar de suas diferenças. Conforme bem aponta Miguel Reale:

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Nesta matéria devemos lembrar-nos de que a verdade, muitas vezes, consiste em distinguir as coisas, sem separá-las. Ao homem afoito e de pouca cultura basta perceber uma diferença entre dois seres para, imediatamente, extremá-los um do outro, mas os mais experientes sabem a arte de distinguir sem separar, a não ser que haja razões essenciais que justifiquem a contraposição.9

2. 1 A teoria do...

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