E eu (ainda) nao sou uma mulher? Genero, interseccionalidade e silencio racial/Am I (still) not a woman? Gender, intersectionality and racial silence.

AutorCastro, Giovana de Carvalho

A História das Mulheres no Brasil é uma história para poucas mulheres, de poucas mulheres, por poucas mulheres. Oriunda de um macro-movimento de (re)escrita da História, atrelou-se a questionamentos acerca da impossibilidade de uma história objetiva e da desmistificação das tentativas de narrativas totalizantes e verdadeiras em sua gênese. Além disso, fez coro, unindo-se às outras vertentes historiográficas, à crítica à história dos "grandes homens", às narrativas lineares e progressivas e à uma história que aspirava ser ciência, dando pontapé para uma nova dimensão em termos de pesquisas e produção de narrativas que historicizaram sujeitos antes invisíveis.

Nessa cruzada antiinvisibilidade, historiadoras (1), em sua maioria, afundaram-se em pesquisas e produções que trouxeram para a História a presença do feminino, possibilitando a construção de novas escritas possíveis, num movimento fortemente influenciado pelas bandeiras do movimento feminista. Por essa ligação umbilical, me atrevo a dizer que uma das questões mais centrais desse movimento foi o desejo de suplantar a mulher como mera condição biológica e reinventá-la como socialmente delineada, pensando suas atuações e vivências em diferentes temporalidades. Esse desejo imprimiu à história das mulheres uma condição sui generis: a de ser um campo de pesquisa fortemente vinculado a um movimento social, impactando diretamente nas produções sobre mulheres ao definir o termo baseado nas experiências das primeiras que chegaram aos bancos universitários. São essas experiências e identidades que irão definir o objeto desse novo campo de pesquisa.

Então, quem é essa mulher da História das Mulheres? É a mulher branca, que, chegando à academia, passou a questionar a universalidade do masculino enquanto categoria analítica num movimento que, antes das historiadoras, foi engendrado pelas feministas. Alinhavado aos movimentos políticos dos anos 1960, esse feminismo é constantemente referenciado como o responsável por apontar a ausência da figura feminina no território historiográfico e, na esteira, questionar os pressupostos epistemológicos que norteavam o mundo do saber.

Do ventre da Nova História dos anos 1970 brotou a tríade articu-ladora dessas novas produções: novas fontes, novos métodos, novos objetos. O mantra da História Nova implicava trilhar rotas tortuosas que não mais estavam nos grandes arquivos nem nas grandes bibliotecas. A História agora garimpava entre cozinhas e baús, cadernos amarelados e cartas de amor. O privado vira público num revirar de memórias que não disfarça sua avidez pelo detalhe, abrindo espaço ao subjetivo, ao pessoal e ao único. Os anos 1980 foram testemunhas das primeiras produções de narrativas históricas sobre mulheres, recheadas de análises sobre como elas sofriam com a dominação patriarcal e a opressão em suas mais variadas facetas, presas fáceis que eram mediante as torturas de um mundo feito para adestrá-las através dos meios mais vis e cruéis.

Pesquisadoras, dentre elas Mary Del Priore, Margareth Rago e Rachel Soihet, somadas a nomes como Leila Algranti, Andrea Borelli e Eni Samara (2), bradaram contra essa essencialização e foram garimpar nas fontes outras possibilidades de analisar o feminino na História. Encontraram inúmeros episódios nos quais as presas lutaram contra as diversas formas de aprisionamento e controle que lhes eram imputados. Nessa busca, novas ferramentas foram se incorporando e os estudos de gênero viraram chave de apelo universal para questionar como essas resistências se constituíram em contextos sobre os quais, até então, se pensava encarar a desigualdade entre homens e mulheres como natural.

Mas a armadilha posta aqui é que essa produção, atravessada pela atuação de feministas brancas de classe média, deixou cristalizada uma mulher universal, assim como a historiografia clássica reificou um homem universal. Foram desconsideradas outras formas de ser mulher, geradas pelo atravessamento de relações de poder, produtoras de distintas experiências históricas e culturais.

As pressões e demandas do movimento feminista, desde os anos 70, assim como a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho e na vida acadêmica forçaram uma quebra do silêncio das historiadoras. O alargamento temático e as novas produções intelectuais resultantes merecem, hoje, uma avaliação crítica. Esta reflexão se faz tanto mais necessária, quanto mais nos damos conta de que a História não narra o passado, mas constrói um discurso sobre este, trazendo tanto o olhar quanto a própria subjetividade daquele que recorta e narra, à sua maneira, a matéria da história. Além do mais, vale dizer que se esta produção não se caracteriza como feminista, nem significou um questionamento prático das relações de poder entre os sexos na academia, ela carrega traços evidentes de uma vontade feminina de emancipação. (RAGO, 1995, p. 81). A construção desse discurso utilizou como balizas as premissas de que a emancipação feminina estava diretamente ligada à superação do jugo masculino, apoiando-se na ideia de que a entrada de mulheres no mercado de trabalho se dá, de forma mais intensa, a partir dos anos 1970. Cria direta da história social, a história das mulheres se fez assim, assentada sob a perspectiva de lançar uma mirada sobre as opressões masculinas e capitalistas (RAGO, 1995), dando pontapé a uma série de publicações que perfilam lutas femininas, em diferentes temporalidades. O problema? Elas o fazem serenamente, desvinculadas da discussão racial, levando-nos à necessidade de evidenciar que são muitos os motores que alimentaram a manutenção dessa invisibilidade.

Deixando de lado por um momento as inúmeras diferenças metodológicas e temáticas que particularizam cada um destes (primeiros) estudos (sobre mulheres), destaco alguns pontos comuns que permitem aproximá-los. Em todos eles, registra-se uma forte preocupação em resgatar a presença de mulheres pobres e marginalizadas, trabalhadoras ou não, como agentes da transformação, em mostrar como foram capazes de questionar, na prática, as inúmeras mitologias misóginas elaboradas pelos homens de ciência para justificar sua inferioridade intelectual, mental e física em relação aos homens e sua exclusão da esfera dos negócios e da política. Além disso, estes estudos estiveram voltados para fazer emergir um universo feminino próprio, diferente, mas não inferior, do mundo masculino e regido por outra lógica e racionalidade. Todas estas historiadoras revelam uma aguda percepção do feminino e trazem enorme contribuição para a descons-trução das imagens tradicionais das mulheres como passivas e incapazes de vida racional e de decisões de peso. (RAGO, 1995, p. 83). Em primeiro lugar, fica evidente que esse resgate, fundante de um novo discurso, manteve-se imerso na lógica colonial e inerte ao não pensar a importância da racialização das relações intra e intergêneros. Ademais, ainda que a inserção do gênero enquanto categoria analítica tenha ampliado a semântica para além das mulheres ao trazer uma perspectiva relacional, que leva em conta não só como se tornar mulher, mas também como o fazer sendo cerceada pela opressão masculina, também claudicou severamente ao partir de um viés eurocentrado e marcado pela branqui-dade. Em questão estava não apenas a mulher que é oprimida, mas também suas subjetividades, numa constituição societária que lhe dizia tudo sobre o não ser, sem lhe permitir visionar a possibilidade de estar.

A despeito...

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