As transformações da noção de serviço público na União Européia: o serviço de interesse geral do Tratado de Lisboa

AutorHelga Maria Sabóia Bezerra
CargoDoutoranda na Universidad de Oviedo, España. Especialista em <i>Derecho Español para Juristas Extranjeros</i>, Universidad de Alcalá de Henares
Páginas104-133

Page 104

1. Introdução

As liberalizações que os Estados europeus vêm levando a cabo desde os anos oitenta do século XX têm provocado a mudança dos limites sob os quais se compreendeu tradicionalmente o termo serviço público, de origem francesa – adotada pelos demais países da Europa continental – e que se estendeu pela América Latina.

Desde seu nascimento até sua atual delineação no Direito comunitário, a noção de serviço público sofreu várias crises, tendo que se adaptar às transformações ocorridas em uma Europa que, devastada por duas guerras, decidiu buscar a integração econômica, política e social.

Este artigo analisa o passo histórico do serviço público ao serviço de interesse geral, reconhecido no novo Tratado de Lisboa – que introduziu modificações no Tratado da União Européia e no Tratado constitutivo da Comunidade Européia – e ao qual vêm adaptando-se os vinte e sete países membros.

2. Evolução histórica do conceito

Definir serviço público supõe uma grande dificuldade. Nisto estão de acordo a maior parte dos administrativistas, como Ariño Ortíz1, Fernán-Page 105dez Rodríguez2 e Sánchez Morón3 fazem notar: as normas jurídicas não esclarecem seu significado e as doutrinas estão repletas de intermináveis tentativas de definição, de modo que há algumas muito amplas e outras muito reduzidas, dependendo do autor que as tenha descrito, do tempo e da situação espacial a que se referem, isto é, em que ordenamento jurídico, de que determinado Estado.

É preciso que se chame a atenção para isto, para ter-se uma idéia da complexidade da matéria. O interessante no estudo dos serviços públicos reside em percorrer o caminho no qual se desenvolveu a noção e os limites em que se moveu o conceito, desde sua ampla e quase onipresente origem, em um Estado que se orientava pelo vetor da solidariedade social, até a redução que, como assinalam Cremades e Rodríguez-Arana4, vem sendo característica a partir da busca de um mercado único no âmbito da União Européia.

2.1. Do Antigo Regime intervencionista às nacionalizações, depois de um período liberal

Desde a Baixa Idade Média até o fim do século XVIII prevaleceu na Eu-ropa um conjunto de costumes e instituições políticas, sociais e econômicas, que os revolucionários franceses de 1789 denominaram Ancien Régime.

Aquele regime caracterizou-se por um sistema político de monarquias absolutas, com os poderes executivo e legislativo centralizados na figura do monarca e o principal bem econômico – a terra e sua produção –, monopolizado como mãos mortas a favor da nobreza e do clero, sem que se conhecesse a noção de livre mercado.

Aquela época foi marcada por um grande intervencionismo dos Estados e pela intensa regulamentação dos meios de produção, comercialização, venda e relações de importações-exportações com outras nações do mundo.

No Estado liberal, divulgado com primazia por Adam Smith quando na França fervia a crise do Antigo Regime, o rol de atividades que compreendiam os serviços públicos era restrito e estava dominado pela idéia do laissez faire, laissez passer.

Page 106

Sobre o liberalismo meditou o filósofo e economista escocês em seu livro, publicado em 1776, An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations (Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações).

Segundo o catedrático de lógica e de filosofia moral da Universidade de Glasgow, o indivíduo busca seu benefício individual, seus próprios in-teresses antes de tudo e, ao buscá-los, promove, sem intenção, o interesse da sociedade. Uma “mão invisível” – a mão invisível do mercado – leva-o a realizar resultados socialmente desejáveis, que não estavam nos seus pla-nos, e ainda mais eficazmente do que se tivesse tentado promovê-los.

A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, possibilitou um incremento na capacidade de produção das áreas têxtil, mineira e metalúrgica. A invenção dos teares mecânicos e da máquina a vapor, na segunda meta- de do século XVIII, transformou a vida humana – com a substituição do trabalho manual pelo fabril – naqueles países onde esses inventos foram aplicados, durante os últimos anos do século XVIII e início do XIX.

A mudança se estendeu pelo mundo, que se fez menor, mais forte e mais rápido com os novos meios de transporte e comunicação. A força das máquinas, turbinas e motores elétricos substituíram o esforço físico humano e animal. A técnica possibilitou a transformação da produção e do consumo a um ritmo nunca visto antes. Nascia o capitalismo criador de riquezas.

Naquele contexto, a economia liberal competitiva criou raízes. Acredi-tava-se que o mercado tinha plenas condições de se auto-regular, de maneira que chegaria a uma situação ótima, equilibrada, plenamente eficiente, onde a produção e o consumo incidiriam, na justa medida, para proporcio-nar o bem-estar dos indivíduos. O Estado, assim, era praticamente ausente na prestação dos serviços e na produção de riquezas.

Entretanto, a idéia de que uma economia liberal seria capaz de atender, por si só, ao amplo leque de necessidades cidadãs, mostrar-se-ia falsa e pouco a pouco cederia lugar à intervenção do Estado na economia.

O surgimento de cada vez mais amplas reivindicações sociais que só o Estado era capaz de satisfazer, deu lugar a sua preponderância na prestação de serviços. A prática tornou evidente que o mercado não se auto-regulava perfeitamente, que o puro liberalismo não era capaz de ordenar a sociedade de maneira satisfatória, já que o mercado mostrou-se suscetível de falhas.

Reconheceu-se que havia casos nos quais a livre concorrência não garantia por si mesma a prestação de certos serviços públicos, básicos para a sociedade.

Page 107

Atualmente estas falhas de mercado são bem conhecidas:

  1. A concorrência não é perfeita – O mercado que, para ser eficiente, teria que ser intensamente competitivo, muito poucas vezes o é de fato. Em um mercado competitivo ideal é necessário que haja tantos produtores e tantos consumidores, que nenhum possa influenciar o preço de mercado. Entretanto, sabe-se que quase todos os mercados caracterizam-se por esta imperfeição, na qual pode estar presente o fantasma do abuso de posição dominante, com produtores com poder para influenciar a demanda com práticas de diferenciação de produtos, publicidade e marcas comerciais; ou restrições à entrada de novos competidores.

  2. Impõe-se o monopólio algumas vezes – A existência de economias de escala (situações em que quanto maior a produção, menor é o custo unitário), não permitindo mais que um produtor no mercado, leva ao surgimento de monopólios. A solução consiste na provisão sem ânimo de lucro ou com perdas, o que somente o Estado está disposto a realizar, pois nenhum particular investiria em um negócio com alto risco de fracasso.

  3. A informação não é simétrica – Em uma economia de mercado em situação ideal, sob condições de concorrência perfeita, um consumidor disporia de uma informação acerca dos bens e serviços, nem melhor nem pior que a de que disporia qualquer outro consumidor no mesmo mercado. As informações seriam simétricas: todos teriam acesso aos mesmos conhecimentos acerca de preços, qualidades, quantidades do produto que buscam para a satisfação de suas necessidades e, portanto, poderiam encontrar no mercado os melhores bens ou serviços, aos mais baixos custos. Desta forma o mercado se auto-regularia sem necessidade de que o Estado interviesse para prover umas condições mais justas e eficientes da distri-buição de bens e serviços.

    Entretanto, na realidade, isso não ocorre. A informação nem sempre é correta nem difundida igualmente entre os consumidores, de maneira que uns encontram-se em situação de assimetria de informação com relação a outros e com relação aos produtores e comerciantes.

  4. Emulação − Ademais, entre as falhas de mercado, encontram-se os bens públicos, aqueles que todo o mundo pode consumir, que não excluem ninguém. Têm por características o fato de que são de natureza não-excludente (não se pode impedir que as pessoas que não pagam não utilizem o produto ou o serviço, e assim não se lhes pode excluir) e de con-sumo não-rival (o fato de que alguém o consuma não diminui a quantida-Page 108de disponível para os demais). Não diminuem quando aumenta o número de seus consumidores. As pessoas podem consumi-los sem ter que pagar por eles e a tendência é que, em lugar de adquiri-los, esperem que sejam outros os que paguem os custos da produção, e assim o bem ou serviço não se produz ou produz-se em menor quantidade que no caso de que todos os consumidores pagassem. A falha consiste em que, ao final, o mercado ou não produz esse bem, ou não é capaz de produzi-lo na quantidade desejada pelos consumidores.

  5. Externalidades negativas – A utilidade que cada consumidor obtém dos bens consumidos não é independente da utilidade dos bens consumidos por outros e tampouco o custo de produção de cada empresa é independente das decisões de produção de outras. As externalidades invalidam a teoria da mão invisível, uma vez que a ação do indivíduo, coexistindo com outros fatos, é incapaz de determinar um resultado ótimo (ótimo de Pareto). Como assinala Schotter5, o resultado pode ser inclusive péssimo.

    Para que o Estado assumisse a titularidade de serviços que viriam a melhorar as condições de vida do cidadão, teve que se tornar intervencionista. Para isso, duas revoluções foram necessárias, num lapso temporal no qual surgiram, como valores...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT