O Regulamento Europeu sobre o Regime Uniforme da Compra e Venda

AutorJ. Pegado Liz
CargoAdvogado. Conselheiro do Cese (Bruxelas)
Páginas275-320

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Excertos

"É efetivamente no Livro Verde sobre a revisão do acervo relativo à defesa do consumidor que, de forma clara, se conirmam as principais razões que alegadamente justiicariam uma intervenção comunitária neste domínio - a recente evolução tecnológica nos mercados, a exagerada fragmentação das regras de proteção dos consumidores e a falta de coniança dos consumidores no comércio eletrônico"

"O Cese considerava que um regime opcional de direito europeu dos contratos deveria poder coexistir sempre com as normas contratuais nacionais"

"O direito europeu comum da compra e venda será um «segundo regime» de direito dos contratos, idêntico em todos os Estados-membros, e será comum a toda a União Europeia"

"O âmbito de aplicação do direito europeu comum da compra e venda centra-se nas situações transfronteiras que podem dar origem a custos de transação adicionais e agravar a complexidade jurídica"

"O âmbito de aplicação do direito europeu comum da compra e venda centra-se nos aspectos que suscitam problemas concretos nas transações transfronteiras"

"Um direito europeu comum da compra e venda, de caráter facultativo, seria mais eicaz do que a adoção de normas não vinculativas"

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I Introdução e antecedentes
A) A Proposta de Regulamento relativo a um direito europeu comum da compra e venda (COM (2011) 635 final)

O consulado da Sra. Viviane Reding enquanto comissária para a área da justiça e dos direitos fundamentais icou marcado por algumas iniciativas emblemáticas sobre temas de grande importância em domínios-chave para a promoção e o reforço da cidadania europeia. Infelizmente em alguns dos mais relevantes, sem aparente sucesso. Reiro-me designadamente à diretiva relativa aos direitos dos consumidores, que depois de um atribulado processo de elaboração e de adoção, continua a braços com tremendas diiculdades de transposição nos Estados-membros1; às Propostas de Regulamento e de Diretiva sobre a proteção de dados, neste momento em apreciação no Parlamento Europeu, onde já foram depositadas mais de 3.000 emendas(!); e à Proposta de Regulamento relativo a um direito europeu comum da compra e venda, objeto do presente artigo e, ele também, sujeito a enorme controvérsia.

Com efeito, a discussão sobre o tema começou muito antes da publicação da Proposta de Regulamento, como, aliás, dá bem conta a comunicação que, na mesma data, a Comissão também apresentou2.

B) O movimento académico em prol de um Código Civil Europeu

É, de fato, nos começos do século XX que vários projetos académicos tiveram como objetivo a harmonização do direito civil europeu, em particular do direito dos contratos. Em 1929 é publicado um projeto de código francoitaliano das obrigações e dos contratos; em 1953 a Associação Henri Capitant elaborou um projeto de código comum das obrigações na Europa. Mais recentemente, em 1980, foi criada a Comissão sobre o Direito Europeu dos Contratos, dirigida pelo professor Ole Lando, que, em 1995, publica a primeira parte dos seus Princípios do Direito Europeu do Contrato (PDEC), contendo os princípios relativos à execução e ao incumprimento, logo seguida, em 1998, por uma segunda parte relativa à formação, validade, interpretação, conteúdo e mandato e, em 2001, por uma terceira parte, sobre o regime geral das obrigações.

Por seu turno, a Academia de Pavia ou, como também é conhecida, a Academia dos Privatistas Europeus, cujos trabalhos foram dirigidos pelo

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professor Gandoli, publica, em 2001, o livro I do Código Europeu dos Contratos, relativo aos contratos em geral e, em 2006, a primeira parte do livro II, relativo aos contratos em especial, dedicado ao contrato de compra e venda.

De outro lado, os princípios Unidroit, elaborados pelo Instituto Internacional para a Uniicação do Direito Privado em 1994, foram revistos em 2004 para os adaptar às especiicidades do comércio eletrónico3.

No seio das instituições comunitárias, foi no Parlamento Europeu que, pela primeira vez, em resolução de 1989, se fez apelo à harmonização de certos aspectos do direito privado4, orientação que viria a reairmar posteriormente em sucessivas resoluções, de que se destacam as de 9 de julho de 2003, de 23 de março e de 8 de setembro de 2006, onde expressamente o Parlamento chegou a declarar que a harmonização de determinados domínios do direito privado é essencial para a realização do mercado interno e que a uniicação dos ramos mais importantes do direito privado, sob a forma de um Código Civil Europeu, constituiria a forma mais eicaz de levar a cabo essa harmonização.

Do lado da Comissão Europeia, é em 2001 que, numa comunicação relativa ao "direito europeu dos contratos", é lançada uma larga consulta pública sobre a possibilidade de elaborar um direito comum dos contratos como forma de contribuir para um melhor funcionamento do mercado interno5.

Nesta comunicação a Comissão propôs-se uma ambiciosa reformulação de todo o direito dos contratos que poderia concluir pela adoção de um "diploma de âmbito geral que incluisse disposições genéricas de direito dos contratos, bem como a tipos especíicos de contratos", ou seja, uma harmonização do direito das obrigações em geral e dos contratos em especial a nível comunitário.

Nesse sentido foram criados vários grupos de trabalho com participação diversiicada de académicos e de representantes dos interesses económicos e sociais europeus, que, ao longo dos anos, têm produzido trabalho notável de relexão jurídica.

Cedo, no entanto, foram muitas as críticas e as objeções que se levantaram quer quanto ao âmbito, à natureza e aos próprios objetivos deste trabalho, quer quanto à sua base jurídica e à ausência de legitimação democrática.

Por outro lado, a enormidade do projeto e as diferentes concepções de vários dos participantes, aliadas à falta de uma orientação bem deinida, conduziram a sucessivos impasses no desenrolar dos trabalhos.

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No seguimento do debate que esta comunicação ocasionou, em especial nos meios académicos, onde foi genericamente acolhida com sérias reservas6, a Comissão publicou, em 2003, uma segunda comunicação, intitulada "Um direito europeu dos contratos mais coerente. Um plano de ação"7, onde deiniu três opções de trabalho futuro: a construção de um "quadro comum de referência" (commom frame of reference - CFR); a elaboração de cláusulas e condições contratuais tipo; ou a adoção de um instrumento opcional no domínio do direito dos contratos8.

Finalmente, recolhidos e analisados os vários contributos recebidos, numa terceira comunicação intitulada "Direito Europeu dos Contratos e Revisão do Acervo.

O caminho a seguir"9, a Comissão decidiu que não optaria por um código civil europeu que harmonizasse o direito dos contratos dos países membros, mas antes que o caminho a seguir seria o da elaboração de um "quadro comum de referencia" (CFR), eventualmente a complementar por um instrumento opcional, cujos contornos não icaram claramente deinidos.

É a partir desta orientação, que não foi sufragada por nenhuma resolução do PE10, que a Comissão deu início a toda uma série de consultas e de encomendas de estudos, ao abrigo, designadamente do "Sexto ProgramaQuadro para a investigação e o desenvolvimento tecnológico", de que se destacam a "Rede comum para o direito europeu dos contratos", a quem foi coniada a tarefa de elaborar um projeto de quadro comum de referência (Draft Common Frame of Reference - DCFR), em sede de direito dos contratos.

Desta rede izeram principalmente parte os membros do grupo de estudo sobre o código civil europeu, o grupo de investigadores sobre o direito privado comunitário em vigor, dito Grupo do Acervo Comunitário ("Acquis Group"), a Associação Henri Capitant em conjunto com a Société de Législation Comparée e o Conseil Supérieur du Notariat, o Common Core Group, o Research Group on the Economic Assessment of Contract Law Rules, conhecido como o Economic Impact Group (TILEC - Tilburg Law and Economics Center), o Database Group, a Academy of European Law (ERA) e um grupo de especialistas em direito dos seguros, o chamado "Restatement of European Insurance Contract Law Group"11.

A Comissão concluiu pela necessidade de uma intervenção no nível da União Europeia

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O objeto das consultas era vasto, englobando as regras gerais do contrato, o direito das obrigações, a gestão de negócios, a responsabilidade extracontratual, o enriquecimento sem causa, os contratos em especial e, desde logo, o contrato de seguro, e, em futuro mais afastado, o direito de propriedade, as garantias e o "trust".

O avanço dos trabalhos foi acompanhado por sucessivos relatórios apresentados à Comissão e discutidos publicamente12, o primeiro de 2005 e o segundo de 200713onde, pela primeira vez, se refere a necessidade de ser dada prioridade ao "direito do consumo" como forma de contribuir para a revisão do acervo em matéria de proteção dos consumidores, tema que havia...

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