Eutanásia, suicídio assistido e diretivas antecipadas de vontade

AutorMaria de Fátima Freire de Sá/Bruno Torquato de Oliveira Naves
Páginas279-302
CAPÍTULO 14
EUTANÁSIA, SUICÍDIO ASSISTIDO1 E
DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
Na minha terra
A morte é minha comadre.
[...]
A grande tarefa é morrer.
[...]
Enegrecidas de chuva e velas,
Adornadas de ores sobre as quais
Sem preconceitos as abelhas poram,
A vida e a morte são uma coisa só.
[...]
Ressurgiremos. Por isso
O campo santo é estrelado de cruzes.2
1. INTRODUÇÃO
A morte está à margem da vida? Quod non! A morte não se encontra à margem da
vida, mas, ao contrário, ocupa posição central na vida. O homem é inteiramente cultu-
ra, da mesma forma que é inteiramente natureza. Contudo, embora a morte faça parte
da vida, as pessoas, de maneira geral, não parecem psicologicamente aptas a lidar com
o pensamento do estado de morte, aquela ideia de inconsciência permanente, e essa é
uma razão para negá-la.
Mas a ideia de ser imortal também não pode ser vista com naturalidade. Se, por
um lado, há o medo de morrer, por outro, deve haver aquele temor correspondente a
ser eterno, imortal. Simone de Beauvoir escreveu obra intitulada “Todos os homens
são mortais”, em que relata, de forma magníf‌ica, a imortalidade de seu personagem
1. Sobre o tema, recomendamos: SÁ, Maria de Fátima Freire de; PONTES, Maíla Mello Campolina. Autonomia pri-
vada e o direito de morrer. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira
(Coords.). Direito civil: atualidades III – Princípios jurídicos no direito privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p.
37-54; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005; SÁ, Maria de Fátima
Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio assistido e diretivas antecipadas
de vontade. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015.
2. PRADO, Adélia. Campo-santo. In: PRADO, Adélia. O coração disparado. 3. ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984,
p. 47-48.
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BIOÉTICA E BIODIREITO • MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ E BRUNO TORQUATO DE OLIVEIRA NAVES
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principal, condenado a jamais compreender a verdade do mundo f‌inito, o que equivale
a uma “danação pura e simples”.
O que é vida, ou melhor, como as pessoas podem compreender o que é uma vida boa?
Perguntas dessa natureza nos remetem aos ensinamentos de Aris tóteles que concebia a
vida como um f‌im em si mesma, não admitindo sua violação sob hipótese alguma. Parece
que essa convicção vinha acompanhando a evolução do mundo e moldou o pensamento
cristão. E, mesmo que o homem moderno tivesse a inf‌luência de Descartes, responsável
pela famosa ideia traduzida na frase “penso, logo existo”, adquirindo consciência sobre
si mesmo, seus desejos e anseios, a noção de que a vida é um bem indisponível quase
nunca foi questionada.
Mas a evolução da Medicina nos fez testemunhar descobertas de drogas capazes de
curar doenças e prolongar a vida das pessoas. Também nos fez testemunhas oculares de
vidas que se prolongaram, exclusivamente, pelo incremento de aparelhagens que subs-
tituíam funções do corpo. Diante da possibilidade de salvar vidas por meio da doação
de órgãos, a Medicina também trouxe mudanças nos critérios def‌inidores do evento
morte. Assim, tecnicamente, a vida humana é determinada pelo crânio e se encontra,
precisamente, no encéfalo, formado pelo cérebro, cerebelo e tronco cerebral. Quando
houver a cessação irrever sível das funções do encéfalo, há que se considerar morta uma
pessoa. Por outro lado, uma pessoa encontra-se viva se seu tronco cerebral – parte do
encéfalo que controla as funções básicas do corpo – está funcionando. Todo esse pano-
rama vem fragilizando o então pré-conceito de indisponibilidade da vida, fazendo com
que as pessoas voltem seus pensamentos para aquilo que elas consideram como parte
de sua essência, ou seja, suas convicções, suas memórias, sua relação com o mundo.
O presente capítulo tem por f‌inalidade discorrer acerca do tratamento jurídico dado
à eutanásia, principalmente no que concerne ao aspecto legislativo. Para tanto, além do
panorama brasileiro, optamos por trazer ao conhecimento do leitor como a questão vem
sendo enfrentada na Holanda, país que teve sua prática legalizada em 2002.
2. DELIMITAÇÕES CONCEITUAIS: EUTANÁSIA, DISTANÁSIA, MISTANÁSIA E
SUICÍDIO ASSISTIDO
O termo eutanásia foi criado no século XVII, pelo f‌ilósofo inglês Francis Bacon.
Deriva do grego eu (boa), thanatos (morte), podendo ser traduzido como “boa morte”,
“morte apropriada”, morte piedosa, morte benéf‌ica, fácil, crime caritativo, ou, simples-
mente, direito de matar.
O direito de matar e de morrer teve, em todas as épocas, defensores extremados. Sa-
be-se que entre os povos primitivos sacrif‌icavam-se doentes, velhos e débeis e faziam-no
publicamente, numa espécie de ritual cruel e desumano. Na Índia antiga, os incuráveis
de doenças eram atirados no Ganges, depois de terem a boca e as narinas vedadas com
lama sagrada. Os espartanos, do alto do Monte Taijeto, lançavam os recém-nascidos
deformados e até os anciãos, sob a alegação de que não mais serviam para guerrear.
Na Idade Média, dava-se aos guerreiros feridos um punhal af‌iadíssimo, denominado
misericórdia, que lhes servia para evitar o sofrimento prolongado da morte e para não
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