Exame dos princípios

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas31-103

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Seção I - Princípios constitucionais e infraconstitucionais

Para logo, deve ser esclarecido que a classificação dos princípios processuais em constitucionais e infraconstitucionais adota como critério fundamental o fato de essas normas estarem previstas, ou não, na Suprema Carta Política do País.

Essa divisão dicotômica, ao contrário do que se possa imaginar, não é inútil: basta observar que se o princípio estiver inscrito na Constituição não poderá ser eliminado ou modificado pelo legislador ordinário. Esses princípios representam, portanto, uma garantia constitucional dos indivíduos e das coletividades. Apenas para exemplificar: o princípio da inafastabilidade da jurisdição (direito de ação) está contido no art. 5.º, inciso XXXV, do texto constitucional; sendo assim, o legislador ordinário (infraconstitucional) não poderá, por mais relevante que lhe pareça o motivo, cercear ou restringir o exercício desse direito de invocar-se a prestação da tutela jurisdicional, com a finalidade de promover a satisfação de interesses ligados a bens ou a utilidades da vida.

Subseção I - Princípios constitucionais

Efetuadas essas considerações introdutórias, examinemos, agora, os princípios atinentes ao processo, que se encontram inscritos na Constituição Federal, ou seja, que caracterizam a tutela constitucional do processo.

1. Devido processo legal

A cláusula do "devido processo legal" (due process of law) teve origem na Magna Charta Libertarum, do Rei João Sem-Terra, de 1215 (art. 39). Inicialmente, a garantia de um "julgamento regular", referida nessa Carta, fora denominada de law of the land, expressão que foi mais tarde substituída, no Estatuto (Statute of Westminster of the Liberties of London) de 1354, de Eduardo III, por due process of law.

Na América do Norte, algumas Constituições estaduais também previram a cláusula do devido processo legal, como as de Maryland, Pensylvania,

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Massachussets e Virgínia. As Constituições da Virgínia ("Declaração dos Direitos", de 16-8-1776) , de Maryland (de 3-11-1776) e da Carolina do Norte (de 14-12-1776) faziam expressa referência à law of the land. Coube à de Maryland, todavia, o mérito de haver aludido, pela primeira vez, ao trinomio: vida-li-berdade-propriedade (life, liberty or property), que seria incorporado por outras Constituições norte-americanas.

Foi, contudo, por força da Emenda n. 5, elaborada por Madison em 1791, que se inseriu na Constituição norte-americana de 1787 a cláusula do devido processo legal, cuja redação era a seguinte:

"Nenhuma pessoa poderá responder por qualquer grave ou infame crime senão mediante apresentação e libelo de um grande júri, exceto nos casos surgidos nas forças militares e policiais, quando em serviço no tempo de guerra ou em período público, nem poderá pessoa alguma, pela mesma ofensa, por mais de uma vez, ter exposta a vida ou a integridade, nem ser compelida em qualquer caso criminal a testemunhar contra si mesma, nem ser privada da vida, da liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nem ter bens expropriados sem justa indenização"(destacamos).

Mais tarde, a Emenda n. XV exigiu que os Estados-Membros concedessem a mesma garantia.

A Emenda n. XVI, introduzida na Constituição de 1868, por sua vez, dispõe:

"Todas as pessoas nascidas e naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à jurisdição de lá são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residem. Nem um Estado deve fazer ou forçar qualquer lei que abranja os privilégios e imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nenhum Estado deve privar qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal, nem condenar qualquer pessoa sem sua jurisdição de igual proteção das leis" (realçamos).

A maioria das Constituições dos Estados Democráticos modernos incorporou a cláusula do devido processo legal. No Brasil, ainda que essa garantia se encontre dispersa pelos textos anteriores, foi na Constituição de 1988 que a ela se fez expressa referência, pela primeira vez. Com efeito, consta do art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens "sem o devido processo legal". Note-se que o constituinte brasileiro fez alusão apenas ao binómio liberdade-propriedade, e não ao trinomio vida-liberda-de-propriedade, característico das Constituições norte-americanas, porquanto, entre nós, não existe a pena de morte, salvo em caso de guerra (Constituição, art. 5º, inciso XLVII, letra "a").

Em verdade, o princípio do devido processo legal não pode ser visto como um dos tantos princípios do processo, senão como o mais importante de todos, um super-princípio, por assim dizer, do qual todos os outros, de certa forma, decorrem. Realmente, se verificarmos que o devido processo legal compreende: a) o direito à citação; b) o direito a um julgamento público, e rápido; c) o direito à produção de provas em geral; d) o direito ao contraditório; e) o direito de não ser processado por lei retroativa; f) o direito à igualdade de tratamento; g) o direito de não ser

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acusado ou condenado com base em provas ilegais; h) o direito à assistência judiciária gratuita ; i) o direito a obter uma sentença fundamentada etc., haveremos de concluir que praticamente todos os princípios processuais estão contidos na cláusula constitucional do due process of law.

Mesmo que se devesse admitir - somente para argumentar - que, no âmbito estrito do processo civil, o princípio do devido processo legal abarcasse, apenas, os: a) de garantia do direito de ação; b) do direito de defesa; c) de igualdade de tratamento; d) do contraditório, ainda assim estaríamos diante de um princípio fundamental, de um superprincípio, conforme dissemos. Em todo o caso, para nós o princípio do devido processo legal tem abrangimento muito mais amplo, pois constitui o somatório de todos os outros princípios. O fato de o constituinte brasileiro haver feito menção não só ao princípio do devido processo legal, mas também a outros, que se encontram naquele compreendidos, não pode ser oposto à nossa conclusão de que o princípio do devido processo legal abrange os demais. Quer nos parecer que essa atitude do constituinte derivou de uma preocupação esclarecedora, consistente em enfatizar o elenco dos princípios integrantes do devido processo legal. Essa enumeração teve, portanto, uma finalidade muito mais didática do que sistemática. De qualquer forma, não devemos confundir o legislador com o jurista: apenas este sói deter o conhecimento da ciência processual.

2. Inafastabilidade da jurisdição

Em rigor, este princípio diz respeito à jurisdição, não ao processo; visto sob a perspectiva da juridição, o princípio aparece como sendo da indeclinabilidade.

Nada obsta, porém, a que o apreciemos agora sob o ponto de vista do processo, mormente se considerarmos que fizemos uma separação entre os princípios constitucionais do processo e os infraconstitucionais, estando o da inafasta-bilidade da jurisdição compreendido no primeiro grupo.

A propósito, o princípio em estudo também pode ser denominado da ação, conforme veremos a seguir. Com efeito, a Constituição Federal declara, no inciso XXXV do art. 5.º, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"; com isso, está a assegurar o direito de ação, consistente na possibilidade de o indivíduo invocar a prestação da tutela jurisdicional, nos casos e forma previstos em lei. A particularidade de a prestação dessa tutela - desde que regularmente invocada pelo interessado - não poder ser recusada pelo Estado justifica falar-se em um princípio da inafastabilidade da jurisidição, ou, mesmo, de um princípio da ação. Em essência, todas essas expressões significam a mesma coisa: o direito de os indivíduos e as coletivi-dades invocarem a atuação jurisdicional do Estado, a que corresponde o dever estatal de prestar essa tutela.

A garantia do exercício do direito de ação traduz, aliás, uma salutar tradição constitucional de nosso País. Praticamente, todas as Constituições republicanas contiveram cláusula a esse respeito. Exceção isolada foi a Carta de 1937,

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outorgada por Getúlio Vargas, na qual não se inscreveu essa garantia. Esse período de exceção ao Estado de Direito, felizmente, já faz parte de um passado (obscuro, por certo). Merece ser referido - e, sem dúvida, lamentado - também o fato de o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, haver excluído "de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares bem como os respectivos efeitos" (art. 11).

O grande contributo da Constituição Federal de 1988 ao tema em estudo consistiu em assegurar o exercício do direito de ação não somente nos casos de lesão de direito, mas nos de simples ameaça de lesão. Como essa ameaça torna o direito material periclitante, isto quer dizer que esse risco pode ser afastado por meio das tutelas de urgência, dentre as quais se incluem as ações cautelares (máxime as derivantes do poder geral de cautela, que o art. 301 do CPC atribui, em abstrato, aos magistrados) e a ação de mandado de segurança, apenas para referirmos algumas.

Em termos práticos, o inciso XXXV do art. 5º da Constituição está a advertir que o legislador (ou quem quer que seja) não poderá, por que motivo for, excluir, ainda que temporariamente, da apreciação dos órgãos do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito. Entre nós, portanto, a ação constitui um direito público subjetivo e abstrato, consistente em obter a tutela jurisdicional do Estado; por outras palavras, a ação se apresenta como o direito subjetivo à sentença de mérito, ainda que, em situações extraordinárias, o processo possa vir a ser extinto sem pronunciamento acerca do mérito (CPC, art. 485). Para que o direito...

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