O Exame Toxicológico nos Restos Humanos: Análises Toxicológicas em Material Biológico com Finalidade Forense

AutorJorge Paulete Vanrell
Ocupação do AutorMedicina, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciatura Plena em Pedagogia
Páginas689-723

Page 689

1. Introdução

As Ciências Forenses são um conjunto de Ciências que formam o embasamento técnico-científico para o estudo sistemático da prova material do Direito Penal.

Desse modo, para constituir seu corpo disciplinar, as Ciências Forenses, como ciência multidisciplinar que é, utiliza-se de diversas áreas do saber humano, tais como: Direito, Matemática, Física, Química, Biologia, Psicologia, Entomologia, Toxicologia, Astronomia, Medicina, entre outras, e a estas associa o estudo dos objetos e do corpo humano encontrados no local de crime, com o objetivo de determinar a gênese, dinâmica e, sempre que possível, a autoria do evento delituoso.

Indispensável para essa atuação eficaz é a figura do Perito Criminal, profissional capaz de observar o fenômeno, descrevê-lo, e interpretá-lo de modo a reconstruir e perenizar todos estes achados em uma peça única escrita e com poder probatório irrefutável, o laudo pericial (ZARZUELA, 1996).

Entre esses achados de interesse, faz-se especial apreciação aos agentes químicos, de origem inorgânica ou orgânica, que poderão produzir danos no organismo vivo, sendo portanto, esta matéria, motivo de apreciação médico-legal. Para tanto levanta-se a Toxicologia Forense, calcada na compreensão da aplicação do estudo dos toxicantes para a elucidação de procedimentos legais ou judiciais, segundo Moffat et al (2004). Este conceito amplo está relacionado à identificação de qualquer substância que possa ter provocado a morte ou causado dano ao homem ou à sua propriedade (POKLIS, 2000).

Page 690

No caso de indivíduo vivo, esses exames referem-se a perícias toxicológicas para rastreio e confirmação de drogas de abuso no âmbito dos exames médico-legais para caracterização de farmacodependência1, e, ainda, com a vigência do regime legal da fiscalização nas ocorrências em acidentes de trânsito, do uso de substâncias psicoativas2. Tais exames periciais compreendem, além dos procedimentos para garantia de cadeia de custódia3de amostras humanas enviadas para análises, os exames de quantificação de álcool etílico no sangue, e o rastreio e confirmação da presença das substâncias psicotró-picas na urina e no sangue, respectivamente (CREMESP, 2008). Importante observar que os exames realizados em indivíduo vivo objetivam a avaliação da intoxicação como circunstância qualificadora de delito, como causa de periculosidade ou de inimputabilidade (RANGEL, 2003).

Em caso de óbito por morte violenta, há obrigatoriedade legal de se proceder ao exame médico-legal, e, caso a suspeita recaia no âmbito das intoxicações, procede-se à requisição de perícia toxicológica. Discorre Rangel (2003) que as intoxicações podem ser classificadas como criminais, legais (no caso da pena de morte), acidentais (sendo estas alimentares, mordedura de animais, absorção acidental de produtos domissanitários, medicamentos, entre outros) ou voluntárias (lesões autoinfligidas, toxicodependência, terapêutica).

Conforme o objetivo do caso em tela e o tipo de análise pretendida, procede-se à seleção e colheita da amostra mais adequada, a amostra de eleição para determinada análise toxicológica. As amostras biológicas foco de análises toxicológicas serão fragmentos de vísceras, fluídos biológicos obtidos na necrópsia ou de coleta de indivíduo vivo (CREMESP, 2008); ainda poderão ser analisadas outras matrizes (líquidos, sólidos, vegetais, etc.) apreendidas no local dos fatos (CEAP, 2007).

Page 691

O acondicionamento e remessa desses materiais biológicos até o laboratório forense obedecerão a critérios rigorosos de garantia da cadeia de custódia, passos fundamentais à preservação e validação da prova pericial, bem como correta realização da perícia. Na conservação das amostras deve ser eliminado todo e qualquer fator de contaminação durante o acondicionamento; devem-se atender às condições de exposição à luz, umidade e calor, fontes prováveis de reações que podem acelerar a decomposição dos materiais a serem periciados (RANGEL, 2003).

Considerando-se o número de substâncias químicas comercialmente disponíveis, mais de 200.000 (CAS, 2003), a maioria dos procedimentos de triagem relatada na literatura é muito limitada para permitir que um resultado negativo seja emitido com segurança. Desse modo, o histórico do caso, ou seja, o conjunto de informações relacionado ao ocorrido orientará a seleção das amostras e a conduta analítica quando associados ao conhecimento da toxicocinética4e toxicodinâmica5da substância sob suspeição. Os laboratórios forenses estabelecem para sua investigação toxicológica a procura daqueles agentes que, segundo sua casuística, estarão implicados na maior parte dos casos observados (RANGEL, 2003).

A identificação inequívoca do toxicante em uma matriz biológica ou não biológica relacionada ao fato permite estabelecer seu nexo causal. Como discorre Oga e Siqueira (2003), no aspecto forense, as análises toxicológicas utilizam os conhecimentos de química analítica na qualificação e/ou quantificação de agentes tóxicos para fins médico-legais em material biológico ou em materiais diversos: água, alimentos, medicamentos, drogas de abuso, entre outras. O resultado obtido estabelece a relação de causa e efeito, ou seja, a detecção de determinada substância química no alimento oferecido à vítima ou em seus órgãos/tecidos evidencia a ocorrência de intoxicação. Por tal motivo, os procedimentos analíticos adotados devem garantir a irrefutabilidade do achado toxicológico (MORAES et al, 1991).

Page 692

2. Análises toxicológicas em material biológico proveniente de necrópsia e exumação
2.1. Aspectos pré-analíticos
2.1.1. Seleção e coleta das amostras

A seleção apropriada, coleção e submissão dos espécimes ao laboratório são de suma importância para a obtenção de resultados acurados e para a sua subsequente interpretação e utilização na adjudicação de casos forenses.

Tanto o histórico do caso quanto o seu escopo legal determinam as matrizes mais adequadas para a realização das análises, tornando-os imprescindíveis para o acertado entendimento do analista forense. Nos exames toxicológicos post mortem6, os tipos e quantidades mínimas das amostras, sejam estas de tecidos ou fluídos biológicos necessários para a avaliação toxicológica, são determinados pelo analito7ou analitos sob suspeição e pela metodologia analítica disponível no laboratório.

Nas mortes envolvendo o uso de vários toxicantes, necessita-se de quantidades maiores de tecidos e fluídos biológicos para que todos os procedimentos analíticos disponíveis possam ser empregados e confirmados. Nesses casos, e nos casos de óbito a esclarecer em que não há qualquer histórico que direcione o analista, recomenda-se a coleta dos espécimes relacionados abaixo, na Tabela 1.

Existem evidências substanciais demonstrando que, para a maioria dos toxicantes, inclusive para o álcool, há diferenças significativas entre as suas concentrações sanguíneas, dependendo do horário de colheita após o óbito, local da colheita, método e volume coletado (POUNDER; JONES, 1990). As amostras coletadas na cavidade cardíaca apresentam resultados mais elevados do que as do sangue periférico (veia femoral). A mesma diferença é observada na concentração de determinada substância em diferentes tecidos, como, por exemplo, hepático e pulmonar.

Page 693

A concentração dos toxicantes encontrada nas amostras de sangue post mortem, mesmo aquelas obtidas da circulação periférica, são superiores às concentrações plasmáticas peri mortem8, particularmente se transcorreram vários dias entre o óbito e a necrópsia. (POUNDER; JONES ,1990; SKOPP, 2004).

A urina é um fluído biológico de grande utilidade nas análises toxicológicas, por ser constituída por 99% de água e apresentar relativamente poucas substâncias endógenas, o que minimiza a interferência da matriz nas técnicas de qualificação e quantificação, tais como a cromatografia e as técnicas por imunoensaios9. Não obstante, três desvantagens podem ser apontadas nessa matriz, quando obtida post mortem:

Page 694

1) só está disponível em 50% dos óbitos, devido ao relaxamento dos esfíncteres durante a morte;

2) muitos fármacos e drogas de abuso são extensamente biotransformados. Portanto, apenas seus produtos de biotransformação10(metabólitos) são detectados em quantidades relevantes na urina, o que dificulta a detecção da substância inalterada; se a metodologia validada, entretanto, incluir a pesquisa dos produtos de biotransformação, a urina é a matriz de eleição;

3) a correlação entre a concentração do fármaco ou droga na urina e no sangue é muito pobre, complicando a interpretação do resultado. A concentração do fármaco e de seus produtos de biotransformação depende do intervalo entre a exposição e a coleta do material (JONES, 2004).

O estômago e seu conteúdo são importantes amostras toxicológicas nas superdosagens11, o que facilita a detecção. Nesses casos, é interessante o envio de todo o órgão estomacal, fechado nas duas válvulas (cárdia e piloro), uma vez que cápsulas ou drágeas semi-íntegras podem ser ali encontradas e submetidas aos procedimentos analíticos validados. Essa matriz apresenta como desvantagem a variação em sua composição, que poderá ser desde um fluído aquoso até um estado semissólido, dependendo da quantidade e tipo de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT