A exceção de inseguridade

AutorSamuel Ewald Davidson Zatta
Páginas307-339
A exceção de inseguridade • 307
A EXCEÇÃO DE INSEGURIDADE
A CA RACTE RIZAÇÃO DE U M
INSTITUTO ESQUECIDO
Samuel Ewald Davidson Zat ta1
Resumo: O instituto da exceção de inseguridade, previsto no artigo 477
do Código Civil, a despeito do parco interesse doutrinário no seu tra-
tamento, apresenta-se como uma ótima ferramenta para que as partes
busquem a preservação do contrato diante da perturbação por fatores
supervenientes. Trata-se de instituto voltado a acautelar os direitos da
parte que se vê obrigada a prestar em primeiro lugar, mas que não possui
a segurança devida de que receberá a prestação da contraparte no futuro.
Assim, por meio do presente trabalho se procurou abordar os pressupos-
tos para a sua conguração e invocação, realizando uma análise conjunta
entre o que as doutrinas nacional e italiana dispõem sobre o tema, bem
como sobre o entendimento jurisprudencial na aplicação do dispositivo.
Palavras-chave: exceção de inseguridade; perda patrimonial; dúvida.
INTRODUÇÃO
A importância de se analisar a relação obrigacional como um
processo já não é de hoje e remonta aos ensinamentos de Clóvis do
Couto e Silva. A complexidade do trato das relações obrigacionais que se
desenrolam no tempo demanda uma detalhada análise das circunstân-
cias fáticas e jurídicas que as circundam.
À luz das relações contratuais contemporâneas em que se vê
uma massicação dessas e uma rapidez cada vez maior no uxo de in-
formações entre as partes, tem-se um momento em que – mais do que
nunca – deve-se valorizar a conança na relação entre as partes.
A consideração acerca da rapidez da troca de informações tam-
1
Advogado em Curitiba/PR. Graduado em Direito pela Universidade Federal do
Paraná. Membro do Grupo de Estudos em Arbitragem e Direito Comercial (GEAC-
-UFPR).
308 • O Direito Civil nos Tribunais Superiores
bém pode ser entendida como uma realidade acerca da mudança das cir-
cunstâncias em que as partes haviam celebrado o seu contrato. Em um
cenário econômico em que as inúmeras perturbações geopolíticas são
capazes de a inuenciar (inclusive fatos imprevistos, como a pandemia
do COVID-19), deve-se buscar meios para garantir a conservação dos
negócios jurídicos, bem como a conança entre as partes e a previsibili-
dade do curso da relação contratual.
O princípio da autonomia privada, ainda que moldado por
limitações que gradativamente lh foram impostas, garante às partes a
possibilidade de dispor sobre as condições de seus negócios e, em sendo
necessário, adaptá-los às novas circunstâncias que mais se adequem aos
seus interesses.
Considerando isso, o presente trabalho tem como objetivo tra-
tar do dispositivo que disciplina uma parte dessas relações, o artigo 477
do Código Civil, denominado exceção de inseguridade. Trata-se de ins-
tituto que não tem merecido mais do que poucas páginas, se não alguns
parágrafos, por parte dos manuais, não se falando de maneira completa
sobre o que o constitui2, isso quando não é confundido com a própria
exceção de contrato não cumprido e com a exceptio non rite adimpleti
contractus3.
É diante desse parco interesse doutrinário que o trabalho se de-
bruçará em uma análise dogmática e jurisprudencial do tema. É objetivo
desse trabalho construir uma conceituação do instituto, bem como de
seus requisitos, trazendo uma nova luz sobre esse instituto pouco apro-
2
Exemplos disso são as seguintes obras: GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito
civil: direito das obrigações - volume 6 - tomo I: parte especial: contratos. 20. ed.
São Paulo: Saraiva Educação, 2018. P. 49; CASSETARI, Christiano. Elementos de
direito civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 38; NADER, Paulo. Curso
de direito civil, volume 3: contratos. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. P. 166;
TARTUCE, Flavio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie,
v. 3. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. P. 314; KONDER, Carlos Nelson. Con-
tratos. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. (Fundamentos do direito civil). P. 152;
LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil, v. 3: contratos. 7. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013. P. 93; RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 18. ed. – Rio de Janeiro:
Forense, 2019. P. 277.
3
Exemplo disso é o entendimento de Flávio Tartuce, que menciona ser o artigo 477
do Código Civil a exceptio non rite adimpleti contractus, quando a hipótese é total-
mente distinta. TARTUCE, Flávio. Op. Cit. P.314
A exceção de inseguridade • 309
veitado, mas com uma enorme relevância e repercussão prática.
1. A EXCEÇÃO DE INSEGURIDADE
Para se atender ao objeto do presente trabalho é necessário que
se parta de pressupostos básicos para a compreensão do que constitui a
gura da exceção de inseguridade. O instituto previsto no artigo 477 do
Código Civil, encontra-se inserido no capítulo referente à extinção do
contrato, dentro da seção III denominada “Exceção do Contrato não
Cumprido”, e apresenta uma redação de que se podem extrair determi-
nados requisitos para a sua qualicação. Veja-se:
Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma
das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz
de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se
obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incum-
be, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia
bastante de satisfazê-la.
Tem-se que o dispositivo prevê que em sobrevindo uma dimi-
nuição patrimonial por parte de um dos contratantes capaz de com-
prometer ou tornar duvidosa a prestação, haveria uma possibilidade de
que a contraparte se recusasse a cumprir a sua obrigação até que o outro
contratante satiszesse a sua obrigação ou prestasse garantia suciente.
Vê-se que a parte busca não realizar a sua prestação em razão da dúvida
existente sobre a situação patrimonial da contraparte.
Para Ruy Rosado de Aguiar Júnior, seria possível a aplicação da
exceção de inseguridade nos casos em que já há o vencimento da obri-
gação de um dos contratantes (excipiente) e não há o vencimento do
outro (excepto), de modo que o primeiro pode alegar dúvida fundada
sobre a possibilidade de que o segundo cumpra no futuro a sua parte,
recusando, portanto, a sua prestação1.
Assim, haveria uma suspensão da “exigibilidade do crédito do
autor até que ele cumpra (se assim decidir, antes do vencimento; ou
se nesse entretempo ocorrer o vencimento), ou até que ofereça garan-
1
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil, volume
VI, tomo II: da extinção do contrato. Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira.
Rio de Janeiro: Forense, 2011. P. 831. Apesar de utilizarmos as noções iniciais pro-
postas por Aguiar Júnior, será explicado adiante que a invocação da exceção de inse-
guridade pode se dar independentemente do vencimento da obrigação do excipiente.

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