Exclusao "da" e "na" educacao superior: os desafios de acesso e permanencia para a populacao trans/Exclusion "from" and "in" higher education: challenges on access and continuance for the transexual population.

Autorde Lacerda, Milena Carlos

Introdução

O presente artigo é oriundo da dissertação de mestrado que versou sobre a construção e implementação do direito ao nome social e ao uso dos banheiros por pessoas trans (1) na Universidade Federal do Tocantins (UFT). A partir da pesquisa documental, a dissertação empreendeu uma análise exploratória dos modos como o acesso e permanência das pessoas trans na educação aparecem nas regulações estaduais do Tocantins e a descrição do processo de construção do direito ao nome social e do uso autorreferido dos banheiros na UFT.

Neste artigo, aproximamo-nos dos desafios que atravessam o acesso e permanência das pessoas trans no ensino superior a partir da eleição de dois dispositivos centrais: o nome social e o uso autorreferido dos banheiros nas instituições de ensino superior (IES), particularizando a experiência da UFT.

A partir dessas reflexões, a análise da educação no contexto da contrarreforma do Estado e a proliferação de narrativas e práticas conservadoras em torno do gênero e da sexualidade requer a centralidade da dialética no fazer investigativo, ao passo que possibilita a mediação ontológica do universal, particular e singular, haja visto os impactos cotidianos na vida social das pessoas trans e as relações sociais mais amplas da produção e apropriação da riqueza social.

É importante lembrar que a disputa política partidária manifesta nas eleições de 2018 no Brasil agudizou o projeto de sucateamento da educação superior, a "cultura do ódio", a perseguição ideológica e a asfixia financeira às universidades empreendida pela ascensão de governos conservadores e autoritários no país. Trata-se de um projeto do capital para educação, na sua mistificação como mercadoria.

No intuito de desvelar esses desdobramentos no cenário nacional, partiremos do pressuposto dialético-crítico para pensar a materialidade da vida social, oriunda dos "modos de ser e determinações da existência" (MARX, 2013), através da pesquisa bibliográfica e análise documental das políticas educacionais voltadas às pessoas trans. Em vista da abordagem qualitativa, lançamos mão do levantamento de registros documentais situados em matérias jornalísticas de 2013-2018 com repercussão institucional, estadual e regional acerca dos direitos das pessoas trans no estado do Tocantins.

A discussão das diferenças e das desigualdades foi direcionada pelo feminismo interseccional, indo além da combinação e sobreposição das formas das desigualdades e ressaltando a capacidade de agenciamento da população trans no cenário institucional adverso.

Com base no espectro de pessoas trans inseridos/as nas instituições universitárias, objetivamos refletir acerca das condições de acesso e permanência, considerando que o apagamento das identidades trans não se apresenta exclusivamente nas universidades, pois as violências e violações a que são acometidas manifestam-se ao longo das suas vidas. Vale mencionar ainda que o escopo aludido anteriormente não é representativo, pois o ingresso no ambiente universitário não é experiência comum às travestis e transexuais brasileiras/os, posto que a entrada na educação superior pressupõe uma formação na educação básica.

De antemão, cabe recuperar que esse estudo adentra a zona periférica de uma temática de invisibilidade, com sujeitos considerados "abjetos" no tecido social, situada em uma região periférica no cenário nacional e alocada numa instituição universitária sucateada. É desse lugar de (re) existência que nos pronunciamos, pois a apreensão das concepções hegemônicas sobre gênero e sexualidade nesse território, que em geral se pauta na defesa da família nuclear burguesa, está em disputa com as organizações coletivas que culminaram nos parcos direitos da população LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Travestis, Transexuais, Intersexuais).

A afirmação do direito à universidade: entre o ser e o não ser

Aludir às questões mais abrangentes que envolvem o acesso e permanência no contexto universitário pressupõe retomar a lógica do capital, da programática neoliberal, do processo de mercantilização das políticas sociais e da precarização do trabalho que impulsiona reformas e ajustes imbricados no metabolismo do capital. À despeito de não traçarmos uma reflexão aprofundada da educação nos limites deste artigo, a concebemos como uma dimensão da vida social alicerçada no sentindo ontológico do trabalho. Como política social, o direito a educação é um direito humano fundamental, garantido constitucionalmente.

Esse pano de fundo oferece balizas teóricas para refletir sobre os desafios do acesso e permanência em diferentes níveis e modalidades educacionais. Os índices indicam que o capital privado protagoniza a oferta da educação superior, acompanhando a terapêutica neoliberal da "democratização" e "acessibilidade". A proliferação da "venda" dos cursos é mascarada pela possibilidade de acesso e acompanha os ajustes norteados pelas diretrizes dos organismos multilaterais com a parceria da iniciativa privada.

As questões do acesso e permanência estão sedimentadas sob um quadro profundamente desigual da sociedade brasileira, pois desde o seu surgimento tardio, a universidade privilegia a formação das elites sociais. Por esse ângulo, o mapeamento do acesso e permanência da população trans em sua particularidade implica a avaliação da expansão do ensino superior e seus impactos no acesso e permanência para as pessoas cisgênero (2).

O próprio ingresso no ensino superior está subordinado a processos de seleção que foram se alterando e se diversificando ao longo dos anos. Gisi (2006) pontua que os processos seletivos para a entrada na educação superior mascaram uma hierarquia socialmente existente, pois conferem um poder simbólico a quem já desfruta de um poder real, na medida que só escolhe os que já estão escolhidos, corporificando uma seleção que já ocorre na própria trajetória de vida do/a estudante. Por esse motivo que as questões envolvendo o acesso e permanência não podem restringir-se à entrada nos portões das universidades, pois esta entrada está atrelada a um percurso anterior, que não envolve somente o cumprimento obrigatório da educação básica, mas as condições objetivas de existência.

Os conteúdos meritocráticos dos mecanismos de exclusão não operam somente no acesso às IES, mas nas possibilidades de permanência. Tratar desse conjunto de desigualdades requer considerar as discriminações históricas praticadas contra os sujeitos sociais excluídos das universidades e alijados do direito à educação. Na mesma proporção, é necessário reconhecer as lutas sociais travadas pelos movimentos sociais, sobretudo pelas ações afirmativas no âmbito da universidade.

Em se tratando da permanência, faz-se necessário recuperar aspectos próprios da rotina universitária que podem ser sobrepostos com o turno, a predileção dos cursos, o período integral, a modalidade de ensino (presencial, semipresencial ou à distância), o caráter público ou privado, a inserção no estágio obrigatório, as atividades extracurriculares, o acesso ao material didático, as limitações concretas de locomover-se à universidade, o vínculo trabalhista, o respeito ao nome social, a focalização dos auxílios da política da assistência estudantil, o exercício da maternidade, entre outras. São questões que se inter-relacionam com as condições objetivas e subjetivas da vida dos/as universitários/as e repercutem no número reduzido de concluintes em relação aos ingressantes.

É nesta articulação que a plenitude do acesso-permanência e conclusão-imbrica-se com as dimensões de classe social, da raça/etnia e gênero. Os índices revelam maior presença de mulheres no ensino superior. Contudo, há de se considerar quais cursos, turnos e modalidades nos quais as mulheres, tanto na rede privada ou pública estão vinculadas. Gisi (2006) alerta que, embora com maior acesso ao ensino superior e com bom desempenho, elas não se orientam para as profissões mais rentáveis e consideradas com maior prestígio econômico, por exemplo.

Entretanto, não podemos tomar as questões de acesso e permanência apenas sob a dinâmica do capital, mas reconhecer e visibilizar a correlação de forças em disputa, principalmente quando remetemos à mobilização dos coletivos negros inseridos nas universidades e das ações do movimento...

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