Execução das obrigações de fazer e não fazer

AutorHumberto theodoro júnior
Ocupação do Autordesembargador aposentado do tribunal de justiça de minas gerais. professor titular aposentado da faculdade de direito da ufmg. doutor em direito
Páginas325-343

Page 325

191. Introdução

O Código de Processo Civil, no Livro II (Capítulo III do Título II), da Parte Especial, cuida da execução das obrigações de fazer e não fazer quando lastreadas em título extrajudicial. As sucessivas reformas do Código de 1973, que culminaram com a abolição da ação de execução de sentença, instituíram o procedimento do "cumprimento da sentença" que se desenvolve, como incidente, dentro do próprio processo em que a sentença condenatória for pronunciada.

Assim, determinava o art. 475-I, do CPC/73 (redação da Lei nº 11.232, de 22.12.2005) que o cumprimento da sentença relativa à prestação de fazer e não fazer se desse conforme o art. 461 e não segundo os arts. 632 e segs. A regra, aliás, já havia sido instituída pelo art. 644 (na redação dada pela Lei nº 10.444, de 07.05.2002), que previa, para os títulos judiciais, a aplicação apenas subsidiária do disposto no Livro II.

Imperativamente, como prevê o NCPC (reproduzindo a sistemática da lei anterior), o art. 4971impõe ao juiz a concessão da tutela específica, retirando-lhe o arbítrio nas conversões das obrigações da espécie em perdas e danos. A sentença que dá provimento ao pedido de cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer deverá condenar o devedor a realizar, in natura, a prestação devida. Para que essa condenação seja dotada de maior efetividade, a norma do art. 497 se afasta do complexo procedimento tradicionalmente observável nas execuções das obrigações de fazer e não fazer (arts. 815 a 823, do NCPC)2e recomenda uma providência prática e funcional: na sentença de procedência do pedido, competirá ao juiz determinar "providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente".

Page 326

Dessa maneira, tão logo transitada em julgado a condenação, as providências determinadas na sentença (ou em complemento desta) serão postas em prática por meio de mandado dirigido ao devedor ou por meio de autorização para as medidas a cargo do credor ou de terceiros sob sua direção. Assim, tarefas que, primitivamente, eram do devedor podem ser autorizadas ao próprio credor, que as implementará por si ou por prepostos, como previsto no art. 249 do Código Civil. Concluída a obra, caberá ao credor apresentar nos autos as contas dos gastos efetuados e dos prejuízos acrescidos, para prosseguir na execução por quantia certa. As medidas de cumprimento devem ser, em regra, precedidas de autorização judicial, inseridas na sentença ou em decisão subsequente. Entretanto, nos casos de urgência, como, v.g., na premência de demolir edificação em perigo de ruína, ou diante da necessidade inadiável de afastar riscos ecológicos ou de danos à saúde, e outros, de igual urgência, há autorização legal para que o credor execute ou mande executar o fato, independentemente de autorização judicial, para posteriormente reclamar o cabível ressarcimento (Código Civil, art. 249, parágrafo único).

Os poderes do juiz para fazer cumprir especificamente a obrigação de fazer não ficam restritos à autorização para que o credor realize ou mande realizar por terceiro o fato devido. Poderá o juiz adotar outras providências que, mesmo não sendo exatamente o fato devido, correspondam a algo que assegure o resultado prático equivalente ao do adimplemento. Por exemplo, o fabricante de um aparelho eletrônico ou de um veículo automotor, que deva garantir seu funcionamento durante certo tempo, não efetue a contento os reparos necessários. Diante da gravidade do defeito e da impossibilidade de manter o objeto em condições de funcionamento dentro de um prazo razoável, poderá o juiz ordenar que, em lugar dos fracassados reparos, o fabricante substitua a máquina defeituosa por uma equivalente, mas que esteja em condições de perfeito funcionamento. Outras vezes, diante da insuficiência técnica da oficina que deveria efetuar os reparos, o juiz poderá autorizar o credor que confira o serviço a outra oficina. Há, portanto, muitos caminhos para que a tutela específica proporcione ao credor de obrigação de fazer o resultado prático que deveria advir do fiel cumprimento da prestação devida.

Essa orientação normativa conservada pelo NCPC, bem se harmoniza com o sistema de direito material traçado pelo Código Civil para o cumprimento das obrigações de fazer e de não fazer.

192. O problema da execução das prestações de fato

Obrigação de fazer é a que tem por objeto a realização de um ato do devedor. A de não fazer é a que importa no dever de abstenção do obrigado, isto é, em não praticar determinado ato. Uma é positiva e outra negativa.

Enquanto nas obrigações de dar a prestação incide sobre coisas, nas obrigações de fazer ou não fazer o objeto da relação jurídica é um comportamento do devedor.

Page 327

Normalmente, as obrigações de dar são realizáveis mediante execução específica, mesmo quando o devedor se torna inadimplente, pois a interferência do Estado é quase sempre capaz de atingir o bem devido para entregá-lo ao credor.

Já com referência às obrigações de fazer acontece o contrário, visto que raramente se conseguirá a atuação compulsória do devedor faltoso para realizar a prestação a que pessoalmente se obrigou.

Há, no caso, razões de ordem prática e ordem jurídica criando obstáculos à execução forçada específica. Subordinado o cumprimento da obrigação a uma atividade ou abstenção do devedor, na ordem prática fica a prestação na dependência de sua vontade, contra a qual o Estado nem sempre dispõe de meio adequado para exigir o implemento específico. Na ordem jurídica, encontra-se o tradicional repúdio ao emprego da força contra a pessoa para constrangê-la ao cumprimento de qualquer obrigação, retratado no princípio geral de que nemo potest cogi ad factum3(ninguém pode ser coagido a fazer alguma coisa).

Daí o motivo pelo qual o Direito Romano proclamava que o inadimplemento das obrigações de fazer ou não fazer resolver-se-ia sempre em indenização4, princípio conservado, em toda pureza, pelo direito medieval e que foi contemplado no Código de Napoleão (art. 1.142).

Com o correr dos tempos, todavia, tornou-se forçosa uma distinção, que veio a abrandar o rigor da impossibilidade da execução específica dessas obrigações. Estabeleceu-se, então, a diferença entre as obrigações só exequíveis pelo devedor e aquelas cujo resultado também pode ser produzido por terceiros.

Criou-se, destarte, o conceito de obrigações de fazer fungíveis e infungíveis, com soluções diversas para cada espécie no processo de execução.5193. Fungibilidade das prestações

Em matéria de obrigação de fazer, entende-se por prestações fungíveis "as que, por sua natureza, ou disposição convencional, podem ser satisfeitas por terceiro, quando o obrigado não as satisfaça".6São exemplos comuns as empreitadas de serviços rurais, como desmatamentos, plantio de lavouras, e as de limpeza ou reforma de edifícios.

Por outro lado, infungíveis "são as prestações que somente podem ser satisfeitas pelo obrigado, em razão de suas aptidões ou qualidades pessoais",7como ocorre com o pintor célebre que se obriga a pintar um quadro e de maneira geral com todos os

Page 328

contratos celebrados intuitu personae. A infungibilidade pode decorrer simplesmente do contrato, pelo acordo das partes (infungibilidade convencional), ou da própria natureza da prestação (infungibilidade natural).

A grande importância da distinção que ora se faz está em que, sendo fungível a prestação, poderá o credor executá-la especificamente, ainda que contrariamente à vontade do devedor. Utilizar-se-ão, para tanto, os serviços de terceiros e o devedor ficará responsável pelos gastos respectivos (NCPC, arts. 816 e 817).8Enquadra-se, também, no conceito de prestação fungível a que na forma original não mais se pode alcançar, mas permite substituição por medida capaz de produzir "resultado prático equivalente", segundo decisão judicial (art. 497).9Se, porém, a obrigação for de prestação infungível, a recusa ou mora do devedor importa sua conversão em perdas e danos,10gerando a execução pela "obrigação subsidiária" e dando lugar à aplicação do clássico princípio de que "c’est en cette obligation de dommages et intérêts que se résolvent toutes les obbligations de faire quelque chose"...11Nesse sentido, dispõe o Código Civil brasileiro de 2002 que "incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exequível" (art. 247).

194. A multa como meio de coação

Além da execução por terceiro, que é objeto próprio do processo de execução, o direito moderno criou a possibilidade de coagir o devedor das obrigações de fazer e não fazer a cumprir as prestações a seu cargo mediante a imposição de multas. Respeitada a intangibilidade corporal do devedor, criam-se, dessa forma, forças morais e econômicas de coação para convencer o inadimplente a realizar pessoalmente a prestação pactuada.

O Código prevê, expressamente, a utilização de multa diária para compelir o devedor a realizar a prestação de fazer ou não fazer. Essa multa será aquela prevista na sentença condenatória e, se omissa, a que for arbitrada durante o cumprimento da condenação (NCPC, art. 536, § 1º).12No caso de título executivo extrajudicial, a multa será fixada pelo juiz ao despachar a inicial da execução, oportunidade em que...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT