Execução forçada

AutorHumberto theodoro júnior
Ocupação do Autordesembargador aposentado do tribunal de justiça de minas gerais. professor titular aposentado da faculdade de direito da ufmg. doutor em direito
Páginas49-84

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8. Processo de execução

O homem não realiza seu destino de ser racional senão pela vida em sociedade. Esse modus vivendi, no entanto, exige dos cidadãos a submissão a normas de conduta, sem as quais o organismo coletivo não subsiste.

Incidindo sobre o procedimento humano, traçam-se regras morais, religiosas, de etiqueta, de bons costumes etc. Todas destinam-se a regular o convívio social. Mas, como simples normas, não são suficientes para assegurar a estabilidade comunitária.

Daí a necessidade de certas normas de caráter obrigatório e indiscutível, impostas pelo grupo social organizado (Estado), vinculando todos os seus componentes e até mesmo o próprio grupo como pessoa moral. São as chamadas normas jurídicas, constantes de leis, costumes, doutrina, jurisprudência e princípios gerais do direito, cujo conjunto forma a estrutura normativa do grupo social organizado, e que se traduz no conceito moderno de Direito.

Essas normas que alcançam os mais variados lances da vida humana, cuidando de tudo quanto se mostre útil ou relevante à tutela do indivíduo e à preservação do organismo social, caracterizam-se por sua imposição coativa a quantos se coloquem no seu raio de incidência.

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A coatividade da ordem jurídica manifesta-se por meio da sanção. De tal sorte, desobedecido o preceito normativo, o Estado está sempre pronto a interferir, por meio de órgãos adequados, para restaurar a ordem jurídica violada, atribuindo a cada um o que é seu, haja ou não concordância do cidadão responsável pela situação concreta.

As medidas que o próprio ordenamento jurídico traça para que o Estado possa invadir a esfera de autonomia do indivíduo e fazer cumprir efetivamente a regra de direito, vem a ser o que se denomina sanção da norma jurídica.

De maneira ampla, as sanções podem ser civis e criminais. Estas últimas dizem respeito à prática de delitos punidos pelo direito penal e dão ensejo a aplicação de penas. As sanções civis são de caráter reparatório e visam compensar ao titular de algum direito subjetivo o prejuízo injustamente causado por outrem.

Em direito processual, a execução forçada destina-se especificamente a realizar a sanção. E, por isso, LIEBMAN a define como "a atividade desenvolvida pelos órgãos judiciários para dar atuação à sanção".1Se, por exemplo, alguém causou dano a outrem e foi condenado a reparar os prejuízos, terá que cumprir a norma de direito que manda o responsável por ato ilícito indenizar a vítima. Da mesma forma, quem assinou uma nota promissória, no vencimento, terá que honrar a obrigação assumida, resgatando a dívida. Em ambos os casos, se o devedor não cumpre por iniciativa própria a obrigação, caberá a intervenção do Estado em seu patrimônio para tornar efetiva a sua vontade sancionatória, realizando, à custa do devedor, sem ou contra a vontade deste, o direito do credor.

O processo de execução cria assim para o devedor uma situação ou estado de sujeição, ficando seu patrimônio à mercê da vontade do Estado, para dele extrair-se o bem devido ou o valor a que tem direito o credor.2Com a execução forçada e por meio do remédio jurídico denominado processo, o Poder Público procura realizar, sem o concurso da vontade do devedor, "o resultado prático a que tendia a regra jurídica que não foi obedecida".3Deve-se notar que muitas vezes a prestação devida, após o inadimplemento ou a violação do direito do credor, não é mais suscetível de realização na própria espécie em que foi convencionada ou estabelecida. Nem por isso a sanção deixará de atuar. Em matéria civil, a realização da sanção, por meio do processo executivo, pode dar-se de duas maneiras distintas, ou seja:

a) realizando o órgão executivo a prestação devida, como no caso de entrega de coisa certa, quando seja possível encontrar o próprio bem devido no patrimônio do devedor; ou

b) expropriando o Estado bens do devedor inadimplente para propiciar ao credor um valor equivalente à prestação a que tenha direito.

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A primeira hipótese denomina-se execução específica e a segunda execução da obrigação subsidiária. Mas, em ambos os casos, o que o Estado faz é sempre a realização da sanção, seja entregando ao credor o bem devido, seja reparando-lhe o prejuízo decorrente da impossibilidade de realizar a prestação in natura.

9. Evolução histórica da execução

O Direito Romano não conhecia outro título executivo que não fosse a sentença judicial. Observava-se com todo rigor o princípio, segundo o qual "deviam conhecer-se as razões das partes antes de fazer-se a execução".4Nos primórdios, nem sequer havia um processo regular de execução, como hoje se conhece. O vencido na ação de condenação ficava à mercê do vencedor, que realizava o direito reconhecido em seu favor ex-proprio Marte, agindo até fisicamente sobre a pessoa do devedor, que podia até ser reduzido à condição de escravo do credor.

Quando surgiu a actio iudicati, em moldes de intervenção do Estado para realizar concretamente o direito reconhecido pela Justiça, a execução forçada só era viável com base em sentença condenatória e tinha lugar depois de decorrido o tempus iudicati, que era o prazo concedido ao devedor para a satisfação voluntária da obrigação.

Mas esse remédio processual importava reabertura da contenda judicial, com discussões infindáveis e possibilidade de novas e sucessivas execuções, tornando-o expediente imperfeito e inadequado ao fim a que se destinava.5Com a dominação dos povos germânicos sobre a Europa ocidental, nos princípios da Idade Média, houve um retrocesso à fase do desconhecimento do processo judicial de execução. Não faziam eles qualquer diferenciação entre processo de cognição e de execução, nem sequer distinguiam entre responsabilidade civil e penal. O regime jurídico era, então, excessivamente individualista, e o devedor sujeitava-se fisicamente ao cumprimento das obrigações, por força de ato do próprio credor.

Com o desenvolvimento dos estudos romanísticos nas grandes universidades da Idade Média, o direito romano passou a influir sobre os conceitos jurídicos então vigorantes na Europa. Desse modo, a partir do ano 1000, aproximadamente, a execução privada foi caindo no descrédito dos povos.

Como, no entanto, a actio iudicati dos romanos ensejava a reabertura de nova disputa judicial, com grandes percalços e inconvenientes, os juristas medievais engendraram um novo instituto que, mantendo o controle jurisdicional sobre a execução, pudesse satisfazer às necessidades sociais e jurídicas da época. Criou-se assim a executio parata, que foi o germe do atual processo de execução.

Segundo esse novo instituto, reafirmou-se o princípio romano da necessidade de prévia condenação judicial do devedor. Mas aboliu-se a actio iudicati com novo

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procedimento contraditório, para autorizar a execução forçada como simples atividade complementar do juiz da condenação. Para obter essa nova prestação jurisdicional, bastava ao credor endereçar um requerimento ao juiz e este, sem sequer ouvir a parte contrária, lançava mão das "faculdades e deveres inerentes a seu ofício" e praticava "os atos necessários a assegurar a execução da sentença por ele proferida".6Essa execução, tida como simples prosseguimento ou complemento do ato de prolação da sentença, recebia a denominação de execução per officium iudicis.

Mais tarde, e ainda por influência do direito germânico, atendendo às necessidades da grande expansão do comércio e procurando contornar os inconvenientes e delongas do procedimento de cognição, passou-se a admitir que os negócios particulares, em determinadas condições, pudessem conduzir diretamente à execução, dispensando-se a sentença condenatória.

Eram os chamados instrumenta guarentigiata ou confessionata (espécies de escritura pública de confissão de dívida), dos quais se dizia que tinham eficácia de execução aparelhada. Depois, igual força foi estendida, também, à letra de câmbio.

Baseados na força que atribuíam à confissão do devedor solenemente manifestada em tais documentos, o resultado prático a que se chegou foi a equiparação, para os efeitos executivos, desses instrumentos à sentença condenatória.

Notava-se, entretanto, uma diferença: na execução promovida com base em sentença, as possíveis defesas do devedor eram muito reduzidas, graças à coisa julgada que amparava o pedido do credor. Cogitava-se apenas da nulidade da sentença e do pagamento posterior a ela. Já na execução fundada em título negocial assegurava-se ao executado a ampla possibilidade de defender-se por todos os meios.7Com o tempo acentuou-se a diferenciação entre as duas execuções que passaram a ser tratadas como institutos distintos: a) uma tida como simples prosseguimento da ação de condenação, com escassas oportunidades de defesa ao devedor; e b) outra em que, ao contrário, tinha-se uma verdadeira ação executiva com prazos e oportunidades especiais para a defesa ampla do executado.

Esse entendimento difundiu-se por toda a Europa central e ocidental penetrando no Direito Português e vindo a refletir no Brasil, onde até o Código de Processo Civil de 1939 vigorava a dicotomia "execução de sentença" e "ação executiva".

Apresentava-se, destarte, como da tradição de nosso direito a separação entre a parata executio e a "ação executiva". Aquela sempre fundada na...

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