Execução forçada e coisa julgada

AutorHumberto theodoro júnior
Ocupação do Autordesembargador aposentado do tribunal de justiça de minas gerais. professor titular aposentado da faculdade de direito da ufmg. doutor em direito
Páginas751-774

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496. Introdução

Consumada a expropriação do bem penhorado e efetuado o pagamento ao credor com o produto apurado na alienação forçada, extingue-se o processo de execução (NCPC, art. 924, nº II).1Surge, então, um problema que pode ser formulado com a seguinte indagação: não se destinando a execução, no sistema do Código, a uma sentença de mérito, e podendo encerrar-se o processo executivo, mesmo quando baseado apenas em título negocial, sem decisão valorativa sobre o crédito do exequente e sua satisfação judicial coativa, haveria em tais circunstâncias o fenômeno da coisa julgada ou algum fato processual análogo incidindo sobre o resultado ou os efeitos da execução forçada? Ou continuaria permitido às partes discutir o mérito da legitimidade do pagamento forçado, em futuras ações de cognição?

Para encontrarmos a solução do problema teremos de analisá-lo com base em três outras indagações básicas, para fixar-se bem:

  1. o objetivo e a natureza do processo de execução, feito o cotejo com o processo de conhecimento;

  2. a natureza e os efeitos dos embargos do devedor; e

  3. a coisa julgada como fenômeno restrito ao processo de conhecimento.

497. Processo de execução

A tutela jurisdicional que o Estado põe à disposição das partes, para impedir a justiça das próprias mãos dos interessados, compreende a declaração da norma jurídica aplicável ao caso concreto, bem como a realização de atos materiais sobre o patrimônio do devedor, para, à custa dele, tornar efetivo o direito do credor.

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No primeiro caso, temos o processo de conhecimento, em que o Estado, por meio de um sistema dialético, proclama "a lei do caso concreto".2Na segunda hipótese; temos o processo de execução, no qual, por meio de um sistema prático, desenvolvemse as medidas necessárias para que a vontade dessa lei seja realmente cumprida.3Tanto num como noutro caso, desenvolve o Estado a jurisdição, que é o poderdever (a função) de fazer atuar a vontade concreta da ordem jurídica, nas situações litigiosas, quer por meio da declaração do direito do caso concreto, quer por meio de execução efetiva do direito reconhecido à parte.

498. Diferenças fundamentais entre o processo de conhecimento e o processo de execução

Como ensina Calamandrei, "a cognição destina-se a retirar da norma abstrata da lei um preceito concreto, individualizado. Isso implica uma atividade de interpretação destinada a eliminar uma situação de incerteza, quanto às consequências jurídicas decorrentes de uma determinada espécie fática, quando dois ou mais interessados estejam em conflito, cada qual deles procurando interpretar o direito de modo a obter consequências favoráveis ao seu interesse individual. A prestação jurisdicional de cognição consiste, pois, em aplicar ao fato a lei que lhe corresponde, definindo o comando concreto da ordem jurídica para a solução do caso controvertido. Resume-se numa declaração de direito subjetivo".4No processo de execução, porém, não se encontra o objetivo de buscar essencialmente a formação de um juízo de veracidade ou de justiça em torno da pretensão do credor. Tudo se passa em torno da realização de atos materiais tendentes à satisfação do direito do promovente, como penhora de bens do devedor, alienação forçada dos referidos bens e pagamento ao credor.5Atua o Estado, na execução, como um substituto, promovendo uma atividade que competia originariamente ao devedor exercer e que consiste em dar satisfação à prestação a que tem direito o credor. E somente quando o obrigado não cumpre voluntariamente a obrigação é que tem lugar a intervenção do órgão judicial executivo, que configura a "execução forçada", em contraposição à imagem de "cumprimento voluntário" da prestação, que vem a ser, tecnicamente, o adimplemento6.

Enquanto no processo de conhecimento o juiz examina a lide para "descobrir e formular a regra jurídica concreta que deve regular o caso", no processo de execução providencia "as operações práticas necessárias para efetivar o conteúdo daquela regra,

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para modificar os fatos da realidade de modo a que se realize a coincidência entre as regras e os fatos".7Embora tanto num como noutro a parte exerça perante o Estado o direito subjetivo público de ação, a grande diferença entre os dois processos reside no fato de tender o processo de cognição à pesquisa do direito dos litigantes, ao passo que o processo de execução parte justamente da certeza do direito do credor, atestada pelo "título executivo".

Não há destarte, decisão de mérito em ação de execução.8A atividade do juiz "é prevalentemente prática e material",9buscando produzir na situação de fato as modificações necessárias para pô-la de acordo com a norma jurídica reconhecida e proclamada no título executivo.

Porque a declaração de certeza é pressuposto que antecede ao exercício da ação de execução,10não se pode considerar o processo executivo como contraditório, pelo menos no sentido dialético, pois o que resulta dele não é uma relação jurídica de equilíbrio ou igualdade das partes, mas de sujeição do devedor à coação estatal posta a atuar em benefício do credor.11Não se deve, porém, considerar o juiz da execução como um autômato que simplesmente atende ao comando do credor. Exerce ele a jurisdição que, como é óbvio, se subordina a requisitos ou pressupostos. E dessa forma, para deferir a coação estatal, terá o juiz de verificar e conhecer das condições de legitimidade da pretensão executiva, exercendo um juízo de legalidade. Mas seu conhecimento, in casu, será sumário e restrito à existência do título executivo e sua perfeição formal, além dos demais pressupostos processuais, que, de ordinário, se exigem para a formação da relação processual. Sobre esses pontos, há cognição e acertamento jurisdicional.

Realizando jurisdição (jus dicere), também o juiz da execução declara ou reconhece o direito da parte, mas apenas o direito pertinente à execução, isto é, proclama que, em face do título apresentado, o credor tem o direito de ver realizada a expropriação executiva. Nada mais.

O título executivo, que é a condição necessária e suficiente para o processo de execução, é fato jurídico que se aperfeiçoa antes da própria execução, assumindo a figura de um pressuposto de legitimidade da atuação jurisdicional executiva. Os fatos anteriores e posteriores ao título, e estranhos a seu contexto, não são levados em conta pelo juiz ao deferir a coação executiva.

A atividade jurisdicional do órgão executivo parte da existência do título do credor e do inadimplemento do devedor e vai até a satisfação coativa da prestação constante

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do título. Quaisquer outras questões existentes entre as partes, ainda que pertinentes ao negócio jurídico documentado no título, não são cuidadas pelo juízo da execução.

Poderão, é certo, ser aventadas e trazidas a juízo pelo devedor, mas não no processo de execução, e sim no processo de conhecimento, pelo ajuizamento da ação de embargos, que implica a instauração de uma nova relação processual entre as partes do primitivo processo de execução, com objeto completamente diverso do deste último, embora possa eventualmente prejudicar o resultado prático da execução pendente.

499. Execução forçada no atual direito brasileiro

O Código de 1973 aboliu a distinção entre ação executória, baseada em sentença de condenação, e ação executiva baseada em título extrajudicial, que vigorava entre nós desde o Brasil colônia.

No regime anterior (de 1939), não havia na ação executória a contestação, e a defesa do executado só podia ser formulada em procedimento à parte, denominado embargos. Na ação executiva, contudo, adiantava-se a penhora logo após a citação, mas seguia-se, depois, o procedimento cognitivo, com possibilidade de contestação nos mesmos autos, e obrigatoriedade de despacho saneador, audiência de instrução e julgamento, e finalmente sentença para ratificar o título extrajudicial.

O Código brasileiro de 1973, no que foi seguido pelo NCPC, esposou o conceito unitário, abolindo a ação executiva para absorvê-la, inteiramente, na ideia única de processo de execução.

Deixou de existir, quanto à força e efeitos executórios, distinção entre título executivo judicial e extrajudicial. Nem se conhece mais, portanto, a ação executiva, como procedimento especial misto de cognição e execução.

Qualquer defesa, no regime de 1973 e no atual, em todos os casos de execução, só se tornou possível mediante o procedimento dos embargos, fora dos autos da ação de execução, em que nenhuma sentença de mérito é proferida. E, por isso mesmo, não havendo embargos, seguem-se sempre, após a penhora e a avaliação, os atos de expropriação de bens (NCPC, art. 875),12sem a dependência de sentença confirmatória do título executivo, seja ele judicial ou não.

Desde então, só haverá julgamento de mérito quando o executado interpuser embargos, mas isto ocorrerá em autos apartados (processo incidente de cognição) e sem interferência no processo de execução, salvo sua suspensão nos casos especiais do art. 919, § 1º, do NCPC.13Houve, pois, completa abolição da fase obrigatória de conhecimento da antiga ação executiva.14

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As reformas por que passou o Código de 1973 a partir da última década do séc. XX, que foram mantidas pelo NCPC, simplificaram ao extremo a execução do título judicial. Criou-se um mecanismo processual que permite ao exequente obter o cumprimento forçado da sentença sem depender da propositura, em separado, de uma nova ação. Na mesma relação processual em que a sentença for proferida, dar-se-á a expedição do mandado...

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