Execução por quantia certa contra o devedor insolvente: insolvência civil

AutorHumberto theodoro júnior
Ocupação do Autordesembargador aposentado do tribunal de justiça de minas gerais. professor titular aposentado da faculdade de direito da ufmg. doutor em direito
Páginas681-720

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447. Introdução

O novo Código previu a futura edição de uma lei especial para regular a execução por quantia certa contra devedor insolvente. Entretanto, resguardou, no art. 1.052, que, enquanto não editada referida lei, permanecem vigentes as disposições do Livro II, Título IV, do Código de 1973 (arts. 748 a 786-A, do CPC/73). Assim, a insolvência civil será tratada adiante, reportando-se, sempre, aos artigos do Código de 1973. Quando quisermos nos reportar ao novo Código, será acrescida aos dispositivos a menção ao NCPC.

448. Execução coletiva e execução singular

O Código de Processo Civil de 1973, sob o nomem juris de "execução por quantia certa contra o devedor insolvente", instituiu o concurso universal de credores com feição de verdadeira falência civil.

Diversamente do que se passava ao tempo do Código de 1939, o concurso creditório deixou de ser mero incidente da execução singular, para assumir a posição de processo principal, autônomo, independente, figurando no rol das várias formas especiais de execução catalogadas pelo legislador.1Trata-se, porém, de um juízo universal, com características peculiares, marcado pelos pressupostos básicos da situação patrimonial deficitária do devedor e da disputa geral de todos os seus credores num só processo.

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Como espécie da execução forçada por quantia certa, subordina-se a execução do insolvente aos mesmos princípios fundamentais que lastreiam aquela forma de atuação jurisdicional,2quais sejam:

  1. responsabilidade patrimonial incidindo sobre bens presentes e futuros do devedor (NCPC, art. 789);3b) objetivo da execução consistente na expropriação de bens do devedor para satisfação dos direitos dos credores (NCPC, art. 824);4e

  2. fundamentação do processo sempre em título executivo, judicial ou extra-judicial (NCPC, arts. 783 e 786).5Mas a estrutura e os objetivos específicos da execução concursal são totalmente diversos dos da execução singular. Enquanto nesta última, o ato expropriatório executivo se inicia pela penhora e se restringe aos bens estritamente necessários à solução da dívida ajuizada, na executiva universal, há, ad instar da falência do comerciante, uma arrecadação geral de todos os bens penhoráveis do insolvente para satisfação também da universalidade dos credores.

Além disso, o critério de tratamento dos diversos credores é feito pelo Código de maneira diferente, conforme a situação econômico-financeira do devedor comum. Se o executado é solvente, o procedimento é de índole individualista, realizado no interesse particular do credor, assegurando-lhe a penhora direito de preferência perante os demais credores quirografários, segundo a máxima prior tempore potior jure (NCPC, art. 797).6Mas se o devedor é insolvente, o princípio que rege a execução já se inspira na solidariedade e universalidade, dispensando o legislador um tratamento igualitário a todos os credores concorrentes, tendente a realizar o ideal da par condicio creditorum.

Inspira-se essa modalidade de execução, segundo Prieto-Castro, num princípio de justiça distributiva que exigiu do legislador a criação de um processo que fosse apto a evitar que credores mais diligentes ou espertos viessem a agir arbitrariamente, antecipando-se em execuções singulares ruinosas e prejudiciais à comunidade dos credores do devedor comum.7Dessa forma, por meio do processo executivo concursal, impõe-se um princípio de ordem, fazendo com que todos os bens do devedor comum se integrem numa única massa para responder pelo conjunto de créditos, até onde alcance o produto da execução, de modo que assegure a observância de regras equitativas de distribuição,

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capazes de evitar que o patrimônio do insolvente seja dilapidado inútil ou nocivamente, com desigualdade e prejuízos à ordem econômica geral. Daí, a conclusão do mesmo Prieto-Castro de que essa execução coletiva atua como garantia do princípio de comunhão de perdas a observar entre os vários credores do insolvente.8449. Pressupostos da execução coletiva

Pode-se definir a execução coletiva ou concursal como o processo "que se observa quando existe um patrimônio que há de responder por um conjunto de dívidas, constitutivas de outros tantos créditos em favor de uma pluralidade de credores, e é insuficiente, no momento, para satisfazer a todos esses créditos em sua integralidade".9Em se tratando de procedimento executivo, subordina-se, em princípio, aos pressupostos ou requisitos necessários a toda e qualquer execução, ou seja, o título executivo e o inadimplemento do devedor (NCPC, art. 786).

Mas, em se cuidando de forma especial de execução, há um pressuposto, igualmente extraordinário, reclamado para sua admissibilidade, que é o estado de insolvência do executado, verificável sempre que "as dívidas excederem à importância dos bens do devedor" (art. 748).

Não bastam, portanto, o título e o inadimplemento. Três são, de tal sorte, os pressupostos da execução coletiva: o título, a mora e a declaração judicial de insolvência,10reveladora da situação patrimonial do devedor de impotência para satisfazer integralmente todas as obrigações exigíveis.

Esse pressuposto específico é definido, pelo Código, de maneira puramente objetiva e sob critério diverso daquele seguido pela legislação falimentar. Enquanto a Lei nº 11.101/2005 considera configurada a insolvência do comerciante pela simples falta de pagamento, no vencimento, de obrigação constante de título que autorize a execução forçada, ainda que o ativo do devedor possa superar seu passivo (LF, art. 94, I), para o Código de Processo Civil a insolvência não pode basear-se tão somente no inadimplemento de obrigação documentada em título executivo.11Diversamente, o Código exige o pressuposto efetivo do desequilíbrio patrimonial, "decorrente de um ativo inferior ao passivo, sem o qual a execução jamais seria contra devedor insolvável".12Para a insolvência civil, de tal forma, o inadimplemento nada mais é do que um dos requisitos de admissibilidade, mas não condição suficiente.

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Aliás, em muitos casos, pode-se até dispensar o inadimplemento ou a cessação de pagamentos como pressuposto da execução coletiva.

Assim é que Moura Rocha lembra que mesmo "havendo o devedor suspendido os seus pagamentos, mas sendo o seu ativo superior ao seu passivo, não será declarada a insolvência. Contrariamente, se não suspendeu os pagamentos, existindo fatos outros indicativos da sua insolvência, então será esta declarada e dará lugar à execução coletiva".13Como exemplos de situação em que a insolvência pode ser declarada na ausência de títulos vencidos, podemos arrolar: a) a autoinsolvência, porquanto o art. 759 assegura ser lícito ao devedor ou ao seu espólio requerê-la a todo tempo;14e b) a insolvência

requerida após serem arrestados bens do devedor, com fundamento no art. 813, ns. I, II e III, já que a medida cautelar, nas circunstâncias em foco, não depende de vencimento da dívida e autoriza a decretação de insolvência, conforme dispõe o art. 750, nº II.15 - 16

Note-se, outrosssim, que mesmo existindo a situação fática da insolvência, não está o credor obrigado a lançar mão da execução concursal. Assiste-lhe o direito de optar entre os dois remédios previstos em lei, de sorte que poderá "buscar a satisfação de seus direitos de crédito tanto com o processo de execução singular quanto através de um processo de execução concursal".17É claro que a opção vigora apenas enquanto inexistir sentença declaratória do estado de insolvência do devedor, porquanto esta é de eficácia constitutiva erga omnes, gerando para o devedor a privação da administração dos próprios bens e para os credores a vinculação obrigatória ao juízo universal do concurso.

Na verdade, antes da declaração de insolvência não existe execução contra o insolvente, mas apenas um processo de cognição tendente a verificar a existência ou não da insolvabilidade. Como lembra Moniz Aragão, "o processo da execução se inicia, como resulta do art. 751, nº III, através da declaração da insolvência".18É assim, com base no citado momento que se ingressa no campo da execução propriamente dita, com agressão ao patrimônio do devedor, visando sua partilha entre os credores segundo a

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força dos títulos de cada um deles. Registre-se, por fim, que diante da moderna distinção que se faz entre dívida e responsabilidade, não só o devedor propriamente dito, mas também o apenas responsável pelo débito alheio pode vir a ser declarado insolvente.

Lembra, a propósito, Celso Neves que embora possível um concurso de credores versando apenas sobre bens do responsável, não se lhe pode negar, todavia, a invocação do benefício de ordem (NCPC, art. 794),19com eficácia inclusive de excluir a insolvência, caso se demonstre que o verdadeiro devedor disponha de bens suficientes para a solução de seu passivo.20Há de ser atendido, também, um pressuposto de natureza subjetiva: a qualidade civil do devedor, isto é, só pode haver a execução coletiva universal regulada pelo Código de Processo Civil quando o insolvente não for comerciante ou empresário, na linguagem do Código Civil de 2002 (Ver, adiante, o item nº 456).

450. Efeitos da declaração de insolvência

Da declaração de insolvência decorrem efeitos análogos ao da falência do comerciante, que se fazem sentir objetiva e subjetivamente, tanto para o devedor como para seus...

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