O exercício político do poder jurisdicional e o STF

AutorSamia Saad Gallotti Bonavides/Renan Cauê Miranda Puglies
Páginas354-380

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Ver Nota12

1. Estado, poder e sistema político

O poder, em linhas gerais, reflete a força de alguns sobre outros; um acúmulo desse conteúdo de contingência e potestade capaz de submeter pessoas e instituições. Há exemplos históricos de utilização indiscriminada e indevida de poder: o colonialismo, os golpes de estado, a escravidão, a submissão da mulher pelo homem, entre outras formas de opressão e subjugação.

Os autores divergem ao elencarem as características do poder, surgindo mais de uma forma de classificação. Dalmo de Abreu Dallari (2013, p. 105) trata da divergência entre duas correntes doutrinárias, dizendo de uma delas que “pretende caracterizar o poder do Estado como poder político, incondicionado e preocupado ‘em assegurar sua eficácia, sem qual quer limitação’, enquanto que outra qualifica-o como poder jurídico, nascido do direito e exercido exclusivamente para a consecução de fins jurídicos”.

José Afonso da Silva (2011, p. 107) fala que o poder político “é superior a todos os outros poderes sociais, os quais reconhece, rege e domina, visando a ordenar as relações entre esses grupos e os indivíduos entre si e reciprocamente, de maneira a manter um mínimo de ordem e estimular um máximo de progresso à vista do bem comum”, sendo que na confluência de vários poderes no ambiente social este se sobressai.

Nessa perspectiva, o poder político estaria intimamente relacionado à organização e governo da polis, o que o aproximaria de seu significado etimo-

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lógico, ligado à atividade de bem governar. Assim, o seu exercício buscaria a continuação das instituições e a permanência do bem social.

Existindo o poder, alguém o detém e o exercita. Pode ser então a pessoa do governante, pois se está apto a reger e organizar a polis, deve também ter condições de controlar seu exercício. Mas existem implicações que decorrem da influência dos sentimentos pessoais e das convicções sobre a tomada de decisão, as quais podem interferir na legitimação, provocando uma desaprovação pelos que estão sujeitos a ele, em relação aos que exercem o poder.

Daí por que a ideia de George Burdeau (2005, p. 10-2), de institucionalização do poder, é consistente, no sentido de que, a partir do momento em que ficou perceptível aos olhos da sociedade a defasagem entre o que se espera de quem exerce o poder e o efetivo resultado, pareceu mais adequada uma visão menos carnal, e, portanto, institucionalizada, visto que assim o poder se despersonaliza, de forma a não se confundir mais com a pessoa que o exerce.

Como resultado de todos esses apontamentos, Burdeau (2005, p. 12) diz que, “no Estado, o Poder é institucionalizado, no sentido de ser transferido da pessoa de seus governantes, que já não têm seu exercício, para o Estado, que desde então se torna seu único proprietário”. Ele é o poder em si.

Norberto Bobbio (2000, p. 73) acaba chegando à mesma conclusão por um caminho um pouco diferente, vindo do conceito de Estado até o de poder. Para ele, a ideia de Estado surge com as primeiras comunidades com um mínimo de organização, que deixam de ser estruturadas exclusivamente em torno das famílias, outorgando certo caráter de governabilidade a uma ou mais pessoas, ou ainda pela corrente contratualista, compreendendo, segundo Bobbio (2000, p. 74-6), a passagem do estado de natureza do jusnaturalismo ao civilismo. Mas ele salienta que independentemente da corrente, os estudiosos de fenômenos políticos resolveram deixar o termo Estado e subs-tituí-lo por outro mais imune às críticas frequentes: sistema político.

Convém destacar a previsão constitucional constante do primeiro artigo da Constituição Federal, de que o poder pertence ao povo, sendo o Estado o ente criado para materializá-lo, para organizar o corpo social, enquanto o governante apenas administra, pratica atos e traduz a forma de atuação do poder estatal. Reza o dispositivo que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, isto é, o titular do poder é a sociedade. Mas tal afirmação necessita de uma explicação complementadora. Porque isso se dá (exercício do

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poder de todos) por meio de algo que está acima dos integrantes do corpo social, para atuar executando os textos legais, ora como ente imparcial, ora sendo discricionário para gerir os interesses que são de todos, fazendo-o com certa margem de liberdade, embora respeitada a legalidade.

Os próprios componentes da sociedade é que consentem com esta estrutura, que impõe respeito e tem força coercitiva, ainda que haja restrição das liberdades para a busca do bem comum.

2. O Estado e a separação de funções

A ideia de Montesquieu sobre a separação dos poderes evoluiu para algo um pouco diferente, havendo outra forma de explicar o que ocorre:

Em primeiro lugar, vale lembrar que Montesquieu, ao elaborar sua clássica tripartição, em momento algum se referiu a qualquer dessas nomenclaturas, que, salienta-se, surgiram na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, cujo artigo 16 declara que a sociedade que não assegurasse a separação dos poderes não teria constituição. [...] É da evolução da doutrina o entendimento de que não há que se falar em divisão de poderes, mas sim em funções do Estado, posto que efetivamente não se vislumbram três Estados, mas sim órgãos de execução do poder político, que emanam do próprio Estado. Conclui-se, portanto, que o poder político se manifesta através dos órgãos do Estado, no qual as funções são atribuídas pela Constituição com suas respectivas competências, em que há divisão de funções e não separação ou divisão de um único poder (MACHADO, 2012, p. 86-7).

Ao invés de separação de poderes então hoje se fala em separação de funções, significando que há funções exercidas por diferentes órgãos, cada um numa respectiva esfera de atuação, permanecendo uno, indiviso e soberano o poder estatal.

Essa divisão, historicamente, se mostrou bastante útil, sendo que, originalmente, a separação idealizada por Montesquieu incorporou-se ao constitucionalismo para garantir os direitos individuais do cidadão frente à força do governante. Posteriormente, contudo, adaptando-se a novas concepções e realidades distintas, a teoria evoluiu para que possibilitasse inclusive o aumento da eficiência, pela distribuição das atribuições para órgãos especializados (Dallari, 2013, p. 214).

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O próprio Dallari completa a ideia, ao afirmar que o antecedente mais remoto da concepção de separação dos poderes ou das funções do Estado se encontra na obra “A Política”, do filósofo grego Aristóteles, alertando não somente sobre o risco do governo ditatorial, pela concentração de poder, mas também sobre a ineficiência.

Maquiavel também tratou da tripartição de poderes, mas de maneira diferente daqueles dois aspectos evidenciados por Aristóteles: redução de poder e efetividade do governo. A separação é encarada como algo que pudesse trazer ao monarca um prestígio maior, ou um menor descontentamento (retirando o peso de julgar conflitos, pois quando se julga há uma das partes que não é atendida).

No século XVII, John Locke contribui para a verdadeira consolidação do tema, sendo notável seu estudo principalmente por demonstrar a necessidade da separação das funções e da desconcentração do poder. Ainda que ao rei fossem atribuídas três das quatro funções propostas, a presença de uma formulação sistematizada, mais que um esboço ou uma ideia, fez com que o plano da abstração começasse a ganhar contornos concretos.

Entretanto, foi com Montesquieu (2002, p. 165-6) que, enfim, a tripartição se solidificou e ganhou contornos para provocar mudanças estruturais nas democracias:

Há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Pelo primeiro poder, o príncipe ou o magistrado cria as leis para um determinado tempo ou para sempre, e corrige ou ab-roga aquelas que já estão feitas. Pelo segundo, determina a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as questões dos indivíduos. Chamaremos este último de “o poder de julgar”, e o outro chamaremos, simplesmente, “o poder executivo do Estado”.

Três funções bem definidas: a do criador e modificador das leis, a de quem faz a gestão, e a de quem julga e pune os integrantes da sociedade.

O filósofo francês se preocupava com a forma de atuação daqueles que detinham o poder, ou seja, daqueles que estavam à frente do Estado e poderiam dele se utilizar para exercer um governo de tiranos, suprimindo a liber-dade dos cidadãos que há tanto tempo se buscava garantir e resguardar.

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A sistematização coerente de Montesquieu, consoante discorre Machado (2012, p. 86), se deu a partir de uma conclusão lógica, no sentido de que, ao se atribuir funções políticas a distintas pessoas, consequentemente são criadas limitações de uma sobre a outra.

Com a teoria dos freios e contrapesos (checks and balances) (DALLARI, 2013, p. 218), cria-se um ponderável sistema de fortalecimento estrutural do estado democrático de direito. É a ideia do peso e do contrapeso (dois pesos na balança que, se equivalendo, dão o equilíbrio), isto é, da estabilidade. Advém ela da doutrina americana para aplicação em formas constitucionais de governo, principalmente naquelas com...

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