Existem bases tributárias dotadas de valor intrínseco? Uma reflexão político-filosófica sobre os fundamentos morais da tributação a partir dos escritos de Liam Murphy e Thomas Nagel

AutorEvanilda Nascimento de Godoi Bustamante - Thomas Bustamante
CargoProfessora Adjunta da Universidade Federal de Viçosa - Professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais
Páginas209-240
Existem bases tributárias dotadas de valor
intrínseco? Uma reexão político-losóca
sobre os fundamentos da tributação a
partir dos escritos de Liam Murphy e
Thomas Nagel
Are there intrinsically valuable tax bases? A political and
philosophical reection on the foundations of taxes based on
the work of Liam Murphy and Thomas Nagel
Evanilda Nascimento de Godoi Bustamante*
Universidade Federal de Viçosa, Viçosa – MG, Brasil
Thomas da Rosa de Bustamante**
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte – MG, Brasil
1. Introdução
Desde o início do último século, pode-se observar um crescente interesse
filosófico sobre os fundamentos do direito tributário, que passou a ocupar
um lugar central na filosofia do direito a partir da publicação de estudos de
filosofia do direito tributário inspirados na teoria da justiça de John Rawls1.
Dentre esses estudos, destaca-se, por seu impacto e rigor metodológico, a
obra “O Mito da Propriedade”, dos professores da Universidade de Nova
Iorque Liam Murphy e Thomas Nagel2.
*Professora Adjunta da Universidade Federal de Viçosa. Coordenadora do Laboratório de Práti-
ca Jurídica da UFV. Doutora em Direito pela UFMG. E-mail: evanildagodoi@ufv.br.
**Professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista em Produtividade do
CNPq (PQ-2). Doutor em Direito pela PUC-Rio. E-mail: tbustamante@ufmg.br. Orcid: 0000-
0002-4493-0088.
1 RAWLS, 1999; 2001.
2 MURPHY; NAGEL, 2002.
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Murphy e Nagel foram capazes de construir um argumento sofisticado
acerca dos fundamentos filosóficos do direito tributário, o qual pode ser
utilizado como pano de fundo para uma crítica aos sistemas tributários
contemporâneos, fundada em argumentos político-morais. Nesse trabalho,
propõe-se uma reflexão política e moral sobre o direito tributário a partir
da obra desses autores, mas que seja capaz de transcender as teses conti-
das em sua obra e criticar uma das conclusões que eles apresentam como
centrais: a tese de que a escolha das bases tributárias a serem adotadas por
um sistema jurídico é dotada de valor instrumental3. Isso porque, para os
autores, qualquer diagnóstico sobre a justiça e a eficiência de um sistema
tributário só pode ser realizado a partir de uma perspectiva global que
considere o resultado da distribuição de bens sociais após a incidência de
todas as normas tributárias e despesas orçamentárias.
Pensando com e contra Murphy e Nagel, busca-se defender a correção
da maioria das suas premissas teóricas e conceituais, mas não em relação à
tese do caráter instrumental da escolha da base tributária. Apoiando-se em
uma importante literatura secundária e na metodologia jurídico-interpre-
tativa fornecida por Ronald Dworkin4, sustentar-se-á, em réplica, que os
princípios fundamentais da justiça tributária justificam a existência de cer-
tas bases tributárias de valor intrínseco. Se a igualdade social for dotada de
valor intrínseco, então certas bases tributárias tidas como imprescindíveis
para a redução das desigualdades e a desconcentração de poder econômi-
co também podem ser tidas como intrinsecamente valiosas, de modo que
nenhum sistema tributário poderá ser considerado justo se não explorar
essas bases.
Para fundamentar essa conclusão, a seção 2 trará uma reflexão geral
sobre o fundamento do direito de propriedade e a crítica realizada por
Murphy e Nagel à crença de que a distribuição de rendas realizada apenas
3 Adotar-se-á neste trabalho a definição de valor instrumental proposta por Joseph Raz, que
distingue entre valores “relacionais” e “não relacionais” nos seguintes termos: “Juízos de valor
não relacionais são juízos do tipo ‘X é bom (ou valoroso)’, ou ‘algo é um bom (ou valioso) X’.
Juízos de valor relacionais têm a forma ‘X é bom (ou valoroso) para Y”. RAZ, 1999, p. 252.
Valores instrumentais, no entanto, são uma subespécie de valores relacionais porque é possível
que haja valores relacionais dotados de valor intrínseco, é dizer, de valor em si mesmo, como
explica Raz no fragmento seguinte: “Bens (ou valores) instrumentais não devem ser confun-
didos com bens (ou valores) instrumentais. Os últimos são bens relacionais, cujo valor reside
em ter consequências valiosas (ou no fato de que eles têm a probabilidade de produzirem tais
consequências)”. RAZ, 1999, p. 255.
4 DWORKIN, 2000.
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pelo mercado deve ser tida como justa. Em seguida, na seção 3, será anali-
sado o primeiro fator de avaliação necessário para valorar o sistema tribu-
tário: a eficiência de suas normas. Em seguida, na seção 4, será explorado
o segundo fator de valoração – a justiça –, bem como a tese de Murphy e
Nagel sobre a natureza instrumental da decisão política de escolha da base
tributária em um determinado sistema jurídico. A quinta e última seção,
por sua vez, reflete criticamente sobre a obra de Murphy e Nagel e funda-
menta, a partir da metodologia não-arquimediana de Ronald Dworkin, a
conclusão de que a justiça do sistema tributário pode ser verificada a partir
do princípio da ‘prioridade local’, com a análise de certas bases de cálculo
tidas como indispensáveis para qualquer sistema político preocupado, ge-
nuinamente, com a redução das desigualdades sociais.
2. Crítica à concepção liberal do direito de propriedade e ao mito da
justiça da distribuição de recursos pelo mercado
As concepções sobre o direito de propriedade oferecidas pelo liberalismo
clássico, cujo principal expoente é John Locke5, e pelo neoliberalismo con-
temporâneo, cujo fundamento filosófico é oferecido por Robert Nozick6,
apresentam um traço em comum: ambas estão construídas sob a premissa
de que a propriedade privada deve ser concebida como um “direito espe-
cial”, na nomenclatura de Jeremy Waldron7. Um direito especial é um di-
reito que surge em razão de eventos particulares que criam ou alteram uma
situação jurídica diferenciada. Como explica o autor, “é um direito que se
considera que uma pessoa tem em virtude da ocorrência de algum evento
ou transação contingente”8.
A palavra “direito” (right) está empregada aqui mais em uma acepção
moral, é dizer, mais no sentido de um “direito humano” ou um “direito na-
tural”, do que em uma acepção estritamente jurídica de “direito subjetivo”,
no sentido de um direito criado por alguma decisão política do legislador
positivo. A propriedade, para Locke, é vista, portanto, como ao mesmo
tempo um direito natural (um direito imanentemente justo, que tem exis-
5 LOCKE, 1998.
6 NOZICK, 1991.
7 WALDRON, 1988, p. 107.
8 WALDRON, 1988, p. 112.
Existem bases tributárias dotadas de valor intrínseco?
Uma reexão político-losóca sobre os fundamentos da tributação

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