O exodo dos refugiados e o direito a resistir/The exodus of refugees and the right to resist.

Autorde Souza, Fabricio Toledo
  1. Introducao.

    No dia 20 de junho de 2014, data que se celebra o Dia Internacional do Refugiado, o Alto Comissariado das Nacoes Unidas para Refugiados (ACNUR) noticiou que o numero atual de pessoas que deixaram suas casas em razao de conflitos ou perseguicao e o maior desde o fim da Segunda Guerra Mundial: 51,2 milhoes de pessoas necessitam de protecao, dentre as quais 16,7 milhoes foram reconhecidas como refugiadas e as demais sao solicitantes aguardando resposta ao seu pedido ou sao pessoas que se deslocaram dentro do proprio pais (3). Homens, mulheres e criancas fogem dos bombardeios na Siria, dos estupros e do recrutamento forcado no Congo Democratico, dos tiros em Mali, explosoes no Afeganistao, Paquistao, Republica Centro Africana etc (4). Apenas da Siria, sairam mais de 2 milhoes de pessoas no ano passado e calcula-se que ate o final de 2014 serao mais de 4 milhoes. Quanto a Republica Democratica do Congo, apesar da nova missao da ONU, a primeira com "permissao para especial para adotar qualquer medida necessaria" (5), nao ha expectativa de paz duradoura.

    Ao mesmo tempo, o ACNUR noticia que ha 800 mil pessoas refugiadas correndo o risco de ficar sem alimento, por consequencia do deficit no orcamento para a compra de racao alimentar (6). A verdade e que as agencias da ONU (Organizacao das Nacoes Unidas) nao tem sido capazes de atender as necessidades basicas das pessoas deslocadas. Em razao da crise financeira, as doacoes diminuiram drasticamente, enquanto aumentaram os conflitos e catastrofes humanitarias. Ha muito tempo, contudo, que maior parte do onus tem recaido sobre paises mais pobres, que sofrem suas proprias dificuldades: Paquistao, Jordania, Quenia e outros, que ja enfrentavam problemas internos graves, estao no limite de sua capacidade de acolhimento e ajuda.

    Os paises em desenvolvimento recebem 86% dos refugiados do mundo, enquanto que aos paises ricos restam apenas 14%. Ha dez anos, esta proporcao era de 70% para 30%, respectivamente, o que demonstra o desinteresse crescente daqueles que teriam, por sua condicao economica, mais capacidade de fornecer acolhida humanitaria sem comprometimento de seus proprios recursos (7). Alem das pessoas deslocadas, refugiadas ou solicitantes de refugio, ha ainda uma enorme multidao de imigrantes em refugee-like situation, fugindo e situacoes de violencia, risco grave ou violacao a direitos basicos, mas que nao serao reconhecidas de acordo com a definicao classica de refugio (8).

    A maioria destas pessoas arrisca sua vida em busca de protecao em outros paises. Tornaram-se lamentavelmente comuns as noticias sobre a morte de imigrantes que tentaram atravessar o Mar Mediterraneo, a caminho da ilha italiana de Lampedusa, por exemplo. Ate setembro de 2014, tres mil pessoas morreram no Mediterraneo, superando em tres vezes o total de mortos em 2013. Ha ainda as mortes nao "oficialmente" contabilizadas. Em outubro de 2013, no intervalo de oito dias, dois naufragios custaram a vida de algumas centenas de imigrantes. No primeiro, 366 imigrantes morreram, depois que o barco lotado com mais de 500 pessoas foi tomado pelo fogo. No segundo, 34 cadaveres foram encontrados no mar, enquanto 200 pessoas foram recolhidas com seguranca. Ainda em 2013, dez haitianos se afogaram nas Bahamas, quando o cargueiro em que se encontravam virou no mar.

    Considerando as mortes nas fronteiras secas, a situacao se torna ainda mais tragica. Na fronteira entre Mexico e Estados Unidos morreram cinco mil pessoas nos ultimos quinze anos, sem contar os desaparecidos. Somente em 2011, foram mais de dez mil pessoas sequestradas no caminho ate os Estados Unidos. No Saara, em duas decadas, sao mil e quinhentos mortos. Ainda em outubro de 2013, quando morriam os naufragos do Mediterraneo, 87 pessoas sucumbiram ao sol e a fome no deserto do Niger, depois que os dois caminhoes que lhe serviam de transporte quebraram. Largados a sede e fome, embaixo de um sol escaldante, os corpos de homens, mulheres e criancas foram encontrados em um raio de 20 quilometros. Foram necessarias sete horas para encontrar todos os corpos.

    O refugiado--no sentido mais amplo do que a definicao estritamente legal, incluindo, portanto, todas pessoas que deixaram seus paises em razao de conflitos, violencias, violacao a direitos humanos basicos, catastrofes, miseria e outros tipos de privacao severa--e a expressao emblematica da crise que se prolonga desde o homem desprovido do direito a ter direitos, conforme o retrato feito por Hannah Arendt (1998), o signo da crise da cidadania, dos direitos humanos e do proprio Estado-nacao. Traz em si a marca da crise de seu tempo, incluindo os outros nomes da Guerra: hoje os refugiados, strictu sensu, fogem dos conflitos internos, das lutas etnicas, dos efeitos das "intervencoes", dos disturbios e nao mais das guerras declaradas entre Estados. Nem melhor, nem pior, apenas formas variadas de violencia e opressao e novos discursos de compaixao.

    Os conflitos espalhados pelo mundo sequer sao assumidos como tal. Alguns aparecem no limite entre a guerra civil e a criminalidade comum, como em algumas partes da Colombia, na ligacao entre miseria e caos social, como na Somalia, ou nas consequencias "naturais" de desastres "naturais", como no Haiti. A populacao que foge--os "deslocados", no vocabulario asseptico dos organismos internacionais--vive na indeterminacao, pois seu status juridico depende de acordos internacionais, criterios subjetivos e decisoes frequentemente arbitrarias.

  2. Vida e excecao.

    Ha uma consistente reflexao sobre o estatuto da excecao e sua relacao com o refugiado, desde pelo menos Hannah Arendt, que de modo singular destacou a figura do refugiado como signo do regime totalitarista e como emblema da crise da politica no seculo XX. Tomando como ponto de partida a reflexao de Arendt e as licoes de Michel Foucault sobre biopolitica, o filosofo italiano Giorgio Agamben retoma a questao dos refugiados para ilustrar o conceito de "estado de excecao". Desde entao, ha uma sequencia de reflexoes e leituras sobre o tema que derivam desta mesma chave conceitual criada por Agamben.

    Talvez Hannah Arendt se surpreendesse ao constatar que a questao dos refugiados nao era uma particularidade do seculo XX e que o numero de pessoas fugindo da violencia em sua terra de origem aumentasse crescentemente desde que terminou a ultima grande guerra mundial. O fato e que a leitura conceitual desenvolvida por Agamben demonstra toda sua pertinencia, principalmente diante das atuais e infindaveis noticias sobre o recrudescimento no tratamento aos refugiados e migrantes. Na perspectiva inaugurada por Arendt e Agamben, e inevitavel perceber que a propria definicao do "que e" e de "quem e" refugiado marca e instaura a excecao.

    E na distincao que os gregos faziam entre zoe, que denominava o simples fato de viver, comum a todos os seres, incluindo os animais, os humanos e os deuses, e bios, que denominava a forma de viver peculiar a um individuo ou grupo particular, que Agamben encontrou o conceito de vida nua. E que ele veria materializada na enigmatica figura do homo sacer, que no direito romano arcaico designava aquele que podia ser morto por qualquer um impunemente, mas sua morte nao deveria se dar conforme os ritos. Por isso, vida matavel, mas nao sacrificavel.

    E do campo de concentracao, este lugar onde a violencia tornou-se absoluta, em que o oprimido se torna opressor e o carrasco por vezes surge como vitima, este pequeno mundo que Primo Levi (9) denominou de "zona cinzenta", que o filosofo destaca a figura do "muculmano". Prisioneiros que desistiram de resistir, anestesiados frente a tudo o que os rodeavam, eram vistos como cadaveres ambulantes, pois lhes restava apenas o conjunto de funcoes fisicas nos seus ultimos sobressaltos...

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