Exposição de motivos - Comentários

AutorMagda Barros Biavaschi
Páginas23-31

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Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que falei foi exato? Foi. Mas teria sido?

Agora, acho que nem...não. 1

No dia 10 de novembro de 2013 comemorou-se o aniversário de 70 anos da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.432, de 1º de maio de 1943, assinado pelo Presidente Getúlio Vargas e pelo Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, Alexandre Marcondes Filho, para viger em 10 de novembro daquele ano. A história de sua construção está profundamente imbricada ao processo de criação e instalação da Justiça do Trabalho no Brasil.

Esse aniversário veio marcado por forte polêmica teórica. De um lado, certa corrente de pensamento apontando para sua "rigidez" incompatível com os "tempos modernos", no suposto de que o incremento da produtividade exige que seja flexibilizada para que os bens produzidos no Brasil possam ser competitivos em nível mundial. De outro, certos expoentes do pensamento econômico heterodoxo argumentando ser equívoco atribuir à regulamentação do trabalho o motor da competitividade, defendendo que os direitos sociais, conquistados contra as leis naturais do capitalismo, não podem sucumbir frente à competição internacional dos mercados. Isso em tempos em que nos quatro cantos do mundo, salvo exceções, os direitos sociais continuam a perder terreno diante da "força bruta" de um capitalismo "sem peias".2

Não têm sido poucos os embates que esta "vetusta" senhora tem enfrentado, aliás, com muita digni-dade. Apesar deles e das transformações pelas quais tem passado, ela resiste. E resiste porque construída em conexão com as necessidades sociais do tempo histórico em que elaborada. Mas se a CLT passou a viger em 10 de novembro de 1943, sua construção deve ser analisada com um espectro de maior dura-

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ção, abordagem que contribui para desmistificarem-se as teses do Mito da Outorga, do Roubo da Fala3, da Cópia Fascista que alguns textos acadêmicos adotam. Por outro lado, a própria longevidade da CLT, ainda que importantes tenham sido as alterações em seu texto, evidencia seu apontado enraizamento com a realidade brasileira e com as demandas da época no sentido da constituição de um arcabouço jurídico específico.

É importante que se contextualize o momento econômico e social em que a CLT foi elaborada, em tempos de profundas transformações4. De um "fazendão", com base tipicamente agrária e marcada herança escravocrata, patriarcal e monocultora, o Brasil iniciou seu processo de industrialização e ingressou no contexto do Século XX como um país moderno, ainda que de forma tardia, como tardio5 foi seu capitalismo. Dessa forma, busca-se compreender: o papel do Estado na institucionalização das regras sociais de proteção ao trabalho; e, as razões de sua ação coordenadora. Ação coordenadora essa, aliás, decisiva para que direitos já positivados fossem consolidados em um texto e para que as instituições aptas a fiscalizar sua aplicação e a concretizá-los fossem criadas, como é o caso do sistema de fiscalização e da Justiça do Trabalho.

Este preâmbulo, que abre obra coletiva assinada por magistrados do trabalho da 4ª Região, TRT4, conta um pouco dessa história. E, ainda que superficialmente, registra certos aspectos da trajetória de uma Justiça Especializada criada com a incumbência de dizer um Direito novo, com fisionomia e princípios próprios, gestado na contramão da solapada Ordem Liberal, inscrito no arcabouço jurídico brasileiro em meio ao seu processo de industrialização.

No Século XIX da Grande Indústria Inglesa, em tempos de capitalismo constituído e de laissez faire, o trabalhador, de forma prevalente, vendia sua força de trabalho a outrem mediante pagamento de um salário. Estavam dadas as condições materiais para o nascimento de um novo ramo do Direito, fundamentado em princípios forjados no campo das lutas sociais. Direito esse que nasceu em um cenário em que a natureza do Estado foi sendo modificada e a Ordem Liberal solapada. E em que, ao invés da prometida sociedade de homens iguais, livres e fraternos, o novo modo de produção acirrava desigualdades e aprofundava iniquidades.

À medida que se desenvolvia esse novo modo de produção, o trabalho, de concreto, transformava-se em abstrato; o valor de uso passava a ser, também, portador do valor de troca. Na Grande Indústria, a força de trabalho era vendida aos proprietários dos bens de produção que, personificando o capital, compravam-na pelo valor diário e a consumiam durante o tempo trabalhado. Assim, a força de trabalho passou a ser vista como fator de produção. O trabalho, que exterioriza a personalidade do ser humano, virou coisa6. E o trabalhador, dominado pelo trabalho morto objetivado nos meios de produção, viu-se destituído até de seu saber técnico, detido agora pelo capital no domínio do processo de valorização que o submete7. Em um momento em que o trabalhador alienava sua força de trabalho ao proprietário dos bens de produção, estava-se diante de nova forma de trabalho, objeto de um Direito que viria mais tarde.

Mas se é verdadeiro que, por um lado, se intensificava a exploração da força de trabalho, desrespeitando-se todas as condições de dignidade dos trabalhadores, por outro se foi conformando uma classe

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operária homogênea e um mercado de trabalho unificado8 que a Grande Indústria passou a regular9. Ainda que a palavra fosse trabalharem até morrer, sem limites, ampliando inseguranças e conflitos, concentrados nas fábricas, ao redor das máquinas, os trabalhadores se uniam, seguindo-se uma luta mais organizada do que outra, visando a manter salários, reduzir jornadas, melhorar as condições de trabalho. Nesse processo, foi-se formando a consciência de si e, a seguir, a consciência de classe.

Assim, diante de uma realidade perversa, movimentos de pressão dos trabalhadores e de suas organizações, de intelectuais, da Igreja, dos partidos políticos, passavam a demandar uma regulação apta a limitar a ação predatória do movimento do capital. Localiza-se aqui a gênese do Direito do Trabalho, ou seja, um momento da história da sociedade em que as condições materiais, históricas, sociais, tornaram possível sua emergência: a configuração do trabalho humano, prestado por indivíduos "livres", por conta alheia, subordinado e remunerado. Daí ser o Direito do Trabalho produto típico do século XIX10, no qual estão fincadas suas raízes. Foi nesse século, na Europa, a partir da Revolução Industrial e da Grande Indústria, que se constituíram as condições que tornaram possível seu nascimento como ramo autônomo do Direito, com fisionomia e princípios próprios. Tratando-se, porém, de fenômeno profundamente imbricado na vida das relações sociais de cada país, sua gênese não pode ser compreendida apartada das lutas concretas que se dão em cada sociedade, com suas circunstâncias históricas.

Em meio ao processo de acumulação do capital e de brutal exploração das forças de trabalho, agudizavam-se os conflitos e as tensões sociais, impulsionando a luta por direitos. Nesse processo, normas de proteção passavam a ser exigidas; de início, contra a exploração das "meias-forças", mulheres e crianças. Muitos são os relatos da época revelando as atrocidades cometidas contra elas, sem a proteção do Estado, sobretudo quanto à limitação da jornada de trabalho e à regulação dos salários. A essa situação, em vários campos e esferas de lutas, a sociedade reagiu e, em um processo que se completou no século XX, o Estado passou a intervir nas relações econômicas e sociais, produzindo normas.

Criavam-se as condições para o nascimento de mecanismos legais de proteção aos trabalhadores que, desde a sua gênese, rompiam com a lógica liberal da igualdade das partes. Para compensar a assimetria nas relações de poder na indústria, disposições disciplinadoras das relações de trabalho postas pelo Estado, objetivamente, colocavam diques à ação trituradora do movimento do capital, contrapondo-se ao primado da autonomia das vontades. Um novo ramo do Direito era gestado. Ainda que suas raízes estejam fincadas no século XIX, grosso modo, até a Primeira Guerra, 1914-1918, não se lhe reconheceu caráter autônomo.

A Organização Internacional do Trabalho, OIT, que veio com o pacto de Versalhes, em 1919, foi marco decisivo para sua afirmação como Direito Social, com reconhecimento internacional. Como registrou Krotoschin11, frase inscrita na Constituição da OIT, O trabalho não é mercadoria, buscou tanto solidificá-lo em âmbito internacional como um direito moderno e social como sepultar aquela compreensão de que o trabalho poderia ser objeto de uma relação no âmbito do Direito Civil, do Direito das Obrigações.

Tendo na dignidade humana o ponto de partida e acentuando a condição humana do trabalhador como tema central de seus fundamentos, o Direito do Trabalho marcou diferença ao unir o elemento humano, pessoal, ao social, coletivo, imbricando-os, situado na contramão de um liberalismo que não poderia dar conta da Questão Social. Talvez nenhum outro ramo do Direito se apresente com tal fisionomia ao garantir direitos objetivos aos homens que trabalham. Não à toa, esse Direito e as instituições aptas a dizê-lo têm sofrido duros golpes em tempos de regresso liberal.12.

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Nessa caminhada, chega-se ao Brasil e às suas especificidades. A Abolição livrara o país de seus inconvenientes. Mas, quanto aos negros, abandonara-os à sua própria sorte13. Deles não se ocuparam as elites dirigentes e o Estado. Suas dificuldades concretas de integração à sociedade acabaram atribuídas à sua inferioridade racial14. Marcas de uma herança dos tempos do Brasil Colônia que acabaram inscritas, a ferro e fogo, na estrutura social, econômica e política deste Brasil de mil e tantas misérias15.

A década de 1930 da Era Vargas não inaugura, é verdade, o reconhecimento da necessidade da legislação social no Brasil. Esse...

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