A Exposição Precoce de Crianças Pequenas à Mídia: Implicações Jurídicas e para o Desenvolvimento Infantil

AutorTamara Amoroso Gonçalves
Páginas224-234

Page 224

1. Introdução

Em 2011, 59,4 milhões dos lares brasileiros tinham televisão — 96,9% do total1. A massificação desse produto, não apenas no Brasil, possibilitou a expansão do mercado de televisores e também o desenvolvimento das emissoras de televisão e empresas produtoras de programas. Houve uma intensa segmentação dos produtos culturais oferecidos pela mídia televisiva, que passaram cada vez mais a se direcionar a públicos bem determinados: mulheres jovens, homens, crianças etc.

Integrada, ao cotidiano das famílias, as telas impactam as formas de relacionamento sociais, hábitos e comportamentos2, trazendo preocupação e polêmica em particular quando o tema é a exposição de crianças às telas. A entrada da mulher de forma cada vez mais agressiva no mercado de trabalho — aliada ao não compartilhamento integral de tarefas domésticas entre os membros do casal e ao não oferecimento pleno de creches e centros de atendimento a crianças pequenas — gerou uma lacuna na esfera do cuidado com os filhos, espaço que foi oportunamente ocupado, em muitos casos, com a introdução da TV como indispensável na rotina diária de muitas famílias.

A criança hoje tem na TV uma forte referência, seja como fonte de conhecimento ilimitado, seja como parâmetro para seus comportamentos, com uma significativa alteração do papel dos pais3. Nesse cenário, quais seriam os impactos da exposição de crianças pequenas à mídia televisiva e quais as implicações legais no âmbito da proteção da criança e do adolescente e do consumidor?

2. TV para bebês: riscos potenciais e exploração pelo mercado publicitário

Canais televisivos exclusivos para crianças não é uma novidade: já em 19794 foi criado nos Estados

Page 225

Unidos o Nickelodeon, direcionado a crianças de 2 a 11 anos de idade e transmitido para 90 milhões de domicílios em mais de 70 países5. Seu exemplo foi seguido por outras emissoras, com a criação de Cartoon Network, Fox Kids e Discovery Kids. No Brasil, o Cartoon Network foi o primeiro canal exclusivamente dirigido ao público infantil, ocupando uma posição de liderança no gosto e interesse das crianças6, cuja média de exposição à TV rivaliza com o tempo despendido nas escolas7.

Vale lembrar que inicialmente a programação televisiva era preparada para atrair toda a família, que se reunia em torno do aparelho na sala da casa. Com a sua popularização, o hábito de assistir à TV tornou-se algo particular e individualizado e as emissoras têm buscado atingir cada vez mais públicos diferenciados e bem definidos. Surge então a ideia de uma televisão só para crianças e, por que não, só para bebês8. A segmentação de conteúdos de mídia também contribui para a segmentação dos mercados, já que boa parte da produção de mídia é suportada pela publicidade. Com a criação de canais e conteúdos exclusivos para crianças, desenvolve-se também um mercado cada vez mais direcionado ao público infantil, que encontra nestas programações específicas um ótimo ambiente de difusão. Assim, o grande investimento no público infantil representa um aporte significativo também na criança como consumidora, seja de produtos televisivos, seja de produtos anunciados na televisão ou mesmo de produtos com licenciamentos de personagens infantis maciçamente anunciados nas diversas mídias.

O precursor dessa programação foi Teletubbies, feito especialmente para bebês de um ano de idade, lançado primeiro na Inglaterra, pela rede de televisão BBC — British Broadcasting Corporation —, e posteriormente nos Estados Unidos, em 1998. Anunciando-se como programa “educativo”, espalhou-se pelo mundo, foi reproduzido em 120 países, inclusive no Brasil, e traduzido para 45 idiomas9.

Foi o despertar da ideia de exploração de mais um novo nicho de mercado: os bebês. Seguindo esta tendência, surgiu em 2004 a primeira programação televisiva direcionada exclusivamente para crianças de zero a três anos de idade, em Israel10. Sendo mercadologicamente vendável e atrativa, a proposta se alastrou por diversos países: Estados Unidos, Itália11, Portugal12 e França, não sem forte oposição e crítica de especialistas da área de desenvolvimento infantil, notadamente na França13 e em Portugal14. O Brasil também conta com programações exclusivas para crianças de zero a três anos. Para os criadores e apoiadores desta programação, ela é necessária porque, se as crianças vão assistir à televisão de qualquer forma, o melhor é que assistam a uma programação especialmente desenvolvida para sua faixa etária.

Os riscos envolvendo a exposição de crianças à TV têm sido objeto de muitas pesquisas, iniciadas com o advento da própria televisão. Há muito que se questiona se esta mídia pode educar — além de entreter e informar — e como ela interfere na formação subjetiva de crianças. Polêmicas abrangem desde a qualidade da programação oferecida para o público

Page 226

infantil até a quantidade de horas de exposição das crianças à mídia e os efeitos daí advindos. Há estudos que indicam relações entre programas violentos e aumento da violência entre jovens15, exposição a cenas com conteúdos sexuais e erotização16 precoce de meninas, dentre outros17. Ainda, o tempo excessivo de televisão visto por crianças contribuiria para o desencadeamento de outros efeitos indesejáveis como obesidade infantil18, consumismo e desgaste das relações familiares.

A programação televisiva, além de modificar os hábitos das pessoas, interferiria na estruturação de seus aparelhos psíquicos19. Em caso de uma exposição precoce à tela, tais efeitos seriam ainda mais intensos, impactando negativamente o desenvolvimento infantil, independentemente do conteúdo veiculado20. Se há tempos especialistas têm estudado e debatido sobre os efeitos negativos da televisão para crianças, a discussão envolvendo bebês é bem mais recente e encontra-se de certa forma polarizada21 entre aqueles que auxiliaram na construção da programação de canais exclusivos para crianças pequenas e os que são radicalmente contra sua exposição à televisão22. Apesar de a exposição de crianças pequenas à TV ser um fenômeno contemporâneo23 e do fato de que a pesquisa com bebês é particularmente difícil de ser conduzida — em razão da fala e linguagem ainda não articuladas, bem como pela ausência de representação mental formada —, evidências científicas indicam que esta exposição é pouco recomendável24.

De acordo com Jean Piaget, de 0 a 2 anos, os bebês estão na fase sensório-motora, em que a apreensão do mundo se dá eminentemente por meio da ação, dos sentidos e do contato com objetos reais; razão pela qual o fundamental é ter contato com o mundo e poder explorá-lo fisicamente. É uma fase em que a linguagem ainda não está articulada e, portanto, o bebê se manifesta por meio do choro e do riso, bem como por movimentos corporais. A representação mental dos objetos ainda não está formada, e isso, aliado ao fato de a linguagem estar em desenvolvimento, faz com que as crianças não consigam nomear e reconhecer objetos por meio de palavras ou imagens que signifiquem estes objetos. Por isso, bebês precisam tocar, sentir, ver, ouvir, sentir cheiros, explorar objetos e ter contato com pessoas, animais e objetos, visto que são essas interações que proporcionam o aprendizado25. A manipulação de objetos (puxar, empurrar, apertar, sentir o cheiro e a textura de objetos etc.) proporciona o desenvolvimento afetivo, cognitivo e motor da criança26. A capacidade de pensar inicia-se nesse período de organização mental (estágio sensório-motor) e caminha até alcançar a capacidade de abstração conceitual que vai se realizar plenamente apenas na adolescência, depois dos 12 anos de idade.

Considerando essa necessidade de experiências reais27, a introdução precoce de telas pode ser prejudicial, na medida em que o aparelho psíquico da criança precisa se preparar para a entrada no mun-

Page 227

do virtual da televisão, sendo necessário primeiro formar o mundo interno, construir a linguagem e a representação mental e o pensamento simbólico — a habilidade de entender que uma coisa pode representar outra — antes de se lhe apresentar imagens que emulam e forjam o real.

Considerando a indissociabilidade do desenvolvimento mental e físico nos primeiros anos de vida, é importante ter em conta que a criança passa por um longo processo de crescimento até que possa andar, falar e agir sem a interferência de terceiros, sendo que o mesmo ocorre com seu amadurecimento mental, cognitivo e emocional. Se a criança na primeira infância necessita explorar ao máximo as possibilidades de movimento, mantê-la em posição estática (como para assistir à TV) significa limitar seu desenvolvimento não apenas físico, mas também mental e psicológico28. A televisão29, apesar de ser colorida e chamativa, ofereceria portanto estímulos muito pobres, mostrando representações de um mundo que a criança ainda desconhece.

Já a interação com o ser humano30, por oposição, oferece estímulos reais às crianças, que ativam os cinco sentidos e promovem real possibilidade de aprendizado — por meio de ações e interações com o meio. Isso porque, como já explicitado, os processos primitivos de comunicação e aprendizado na infância dependem da relação com o objeto real externo e têm como base mecanismos imitativos. A imitação e a repetição fazem parte do processo de aprendizagem e estão intimamente ligadas aos fenômenos de memorização e de funcionamento da rede associativa de ideias. Pesquisas31 indicam que a habilidade de crianças de 12, 15 ou 18 meses em imitar sequências de várias etapas, como agitar um chocalho, a partir de imagens televisionadas, é mais lenta que a habilidade de aprender a partir de eventos observados ao vivo, o que levaria a crer que elas teriam na verdade maior dificuldade em aprender por meio da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT