O extremo do 'extremo da vida': a possibilidade de eutanásia no direito brasileiro e seus limites
Autor | Caio Ribeiro Pires |
Ocupação do Autor | Mestre em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduado na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Advogado |
Páginas | 281-297 |
O EXTREMO DO “EXTREMO DA VIDA”:
A POSSIBILIDADE DE EUTANÁSIA
NO DIREITO BRASILEIRO E SEUS LIMITES
Caio Ribeiro Pires
Mestre em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduado na
Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Advogado.
“My body is a cage… That keeps me from dancing with the one i love”.
(Arcade Fire, My Body is a Cage)
Sumário: 1. Introdução. 2. O “Extremo da Vida”: perspectivas atuais entre a morte e o direi-
to. 2.1 A pessoa humana no centro: construção do direito à morte digna. 2.2 Uma agenda
para morte digna? Desaos na sociedade contemporânea. 3. Autonomia existencial como
fundamento para o direito à morte digna. 3.1 O desenvolvimento do direito de decidir sobre
a própria vida. 3.2 Eutanásia: obstáculos e o impossível controle temporal do falecimento. 4.
Notícias de um “crime consumado” em perspectiva crítica. 4.1 O direito de decidir o trata-
mento médico. 4.2 A eutanásia como disposição sobre o próprio corpo, da Constituição ao
Direito Civil: emergência de uma possibilidade adormecida. 5. Autonomia e decisão perante a
morte: perspectivas e proposições de materialização para o Brasil atual. 5.1. Limites objetivos
e subjetivos ao exercício do direito à morte por meio da eutanásia ativa. 5.2 Viabilização do
consentimento: uma questão procedimental. 6. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A trajetória da “luta até o fim” deverá ser escrita na bibliografia de toda pessoa? Será
necessário submeter-se a tratamentos mesmo quando a reversão do quadro médico é
impossível, adiando o falecimento a duras custas de efeitos colaterais e físicos insupor-
táveis? Ainda mais, é legítima intervenção que busca o fim imediato desta vida?
São estas perguntas que rondam o tema que aqui será analisado. Afinal, é esta a
realidade fática que motiva discussões sobre a eutanásia como a possibilidade de alguém
encurtar a vida de outrem, que se encontra em estágio terminal, para aplacar o sofrimento
deste.
Para debater este cenário analisa-se o ordenamento jurídico guiado pelos princípios
constitucionais e demonstra-se, de início, a construção de um direito à morte digna por
meio do livre desenvolvimento da personalidade, além de sua aplicação na relação mé-
dico paciente. Conforme estes pressupostos revisita-se não só o conceito, mas também
a legalidade dos atos de eutanásia ativa no direito brasileiro e, consequentemente, sua
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Como forma de contestar estar afirmativa classifica-se grande parte das espécies de
eutanásia como recusa ao tratamento médico, ou decisão informada por aceitar o risco ao
qual se submete, possível dentro da legalidade conforme o art. 15, Código Civil, isolando
então a eutanásia ativa. Dito isto, propõe-se qualificá-la entre os atos de disposição do
próprio corpo, na esteira da interpretação civil-constitucional deste direito presente no
Questiona-se assim a constitucionalidade de subsumir tais atos ao tipo penal su-
pracitado. No esquadro da teoria geral do direito civil, suscita reclassificação dela, da
categoria de ato ilícito àquela do negócio jurídico existencial.
Após sustentar-se a possibilidade de eutanásia no direito brasileiro, traçam-se os
limites de cunho objetivo (situações possíveis) e subjetivo (quem poderá realizar) de sua
efetividade. Menciona-se, ao final, a importância de se estabelecer um procedimento, por
meio das regras gerais da jurisdição voluntária pátria, finalizado a demonstrar a vontade
do paciente e resguardar a conduta médica por ratificação judicial para o exercício deste
direito de decidir sobre a própria vida.
2. O “EXTREMO DA VIDA”: PERSPECTIVAS ATUAIS ENTRE A MORTE E O
DIREITO1
2.1 A pessoa humana no centro: construção do direito à morte digna
Dizer que a morte é, efetivamente, um direito não é afirmação estanque, mas sim que
se constrói, na doutrina, em nuances jurídicas diversas. Mais do que isso, este caminho
apenas viabiliza-se no discurso jurídico alicerçado pela constitucionalização do direito.
O fluxo de mudanças ocorridas a partir do pós-segunda guerra mundial aponta à
centralidade da pessoa humana nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo ocidental,
resultante dos horrores do período anterior. Contra este estado de coisas assentou-se
um consenso mundial de que alguns direitos do ser humano deveriam ser respeitados
por sua condição de pessoa humana, mínimos para uma existência digna. Surge, nesta
seara, o principal documento produzido neste momento histórico: a Carta Universal
dos Direitos Humanos, de 1948.
Na ordem jurídica brasileira este decurso instaurou-se durante a redemocratização
do país, devido à Constituição Federal de 1988, eleita a dignidade da pessoa humana como
fundamento da República (art. 1º, inciso III, Constituição Federal). Não se isola desta
mudança o direito civil, disciplina responsável pelo cotidiano dos privados. Também
seu centro deixa de ser o sujeito de direito abstrato, tutelado apenas quando inserido
no perfil de proprietário, contratante e pai de família deslocando-se o protagonismo à
pessoa humana, inserida na realidade social.2
1. O termo “extremo da vida” faz referência à clássica obra de Ronald Dworkin, a qual aborda o desafio do direito ao
normatizar as questões relativas ao fim e início da vida. DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e
liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
2. TEPEDINO, Gustavo. O papel atual da doutrina do direito civil entre o sujeito e a pessoa. In: TEPEDINO, Gustavo;
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Orgs.). O direito civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em
homenagem ao professor Stefano Rodotá. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 17-19.
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