Fabricar a Cultura da Paz

AutorJosé Renato Nalini
Ocupação do AutorPresidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no biênio 2014/2015, autor de Ética geral e profissional. 10. ed. São Paulo: RT, 2010.
Páginas268-272

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Ao Ministro Antonio José de Barros Levenhagen , padrão-ético na Justiça laboral, educador por excelência e inspiração permanente para os que sonham com a Justiça concretizada na pacificação, a esperança dos que o admiram.

Uma sociedade com 93 milhões de processos em curso e submetidos à apreciação de juízes e tribunais não pode ser uma sociedade saudável. Só pode estar enferma. Entretanto, a insensibilidade parece haver se acostumado com o fenômeno e não o considera extremo, nem digno de maiores preocupações. A política pública de tratamento adequado dos conflitos oferece aos brasileiros uma só via: a judicialização. Todos os temas, as menores questões, viram ações judiciais.

Será que existe tanta litigância no convívio? As pessoas geram divergências que precisam de um profissional tão qualificado como o juiz para solucioná-las? Se isso é real, então o mundo necessita de urgente reforma.

A que se deve esse mal-estar moderno e pós-moderno? Será uma característica da condição humana? A civilização cristã ou ocidental remete à clássica indagação de Caim: "Por acaso sou guarda de meu irmão?". A repercutir na pessimista visão hobbesiana da luta de todos contra todos, pois o homem é o lobo do homem. Ninguém parece suportar a mínima lesão a seu ego. Tem de acionar a Justiça para ressarcir a hipersensibilidade.

Em 1930, Sigmund Freud escreveu um livro que chamou "A infelicidade na cultura", em seguida rebatizado como "O mal-estar na cultura" e finalmente publicado sob o título "O mal-estar na civilização". Seu fundamento é que a civilização se constrói sobre uma renúncia ao instinto. Conviver impõe grandes sacrifícios à sexualidade e à agressividade humana. Para sobreviver sem exterminar o semelhante, a criatura humana se autolimita, aceita amarras e focinheiras. Todavia, no fundo persiste aquela volúpia por dominar sempre, que rompe com facilidade a tênue camada de verniz que disfarça a selvageria animal.

Selvageria que se manifesta nas minúsculas vulnerações, mas também pode deflagrar chagas gigantescas na desejável harmonia entre criaturas igualmente frágeis, efêmeras e com exíguo prazo de validade. Se os homens tivessem exata noção de sua finitude, talvez não perpetrassem atrocidades que a História sempre registrou e continua a catalogar.

Grandes crimes surgem de grandes ideias. Um exemplo recente é a solução final alemã. Na verdade, era uma resposta a uma situação esteticamente adversa. O dedo mágico do artista na tentativa de eliminar a mácula da fealdade. O plano era simplesmente aniquilar o considerado não harmonioso. Havia setores

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considerados "poluídos" e a presença de pessoas que "não se ajustavam" aos padrões, que estavam "fora do lugar" e "estragavam o quadro" reclamava uma postura drástica. O extermínio foi uma faxina eugênica. Não é surpreendente que a vida continuasse em ritmo normal entre os não atingidos? Isso mostra a potencialidade de retrocesso, nada obstante o discurso de indignação que produziu uma tonelagem de obras sobre o Holocausto.

Será impossível o retorno da barbárie? Ninguém pode garantir o contrário. É preciso estar vigilante e especialmente atento numa sociedade iníqua e desigual como a brasileira. Aqui convivem - e no mesmo espaço físico - a mais escandalosa riqueza e a mais abominável miséria. É dever dos sensatos e dos sensíveis atuar contra a corrente que considera natural esse fosso. A poucos importa a miséria, a exclusão, a injustiça rotineira. Fagulha prestes a explodir a qualquer estímulo.

A conflituosidade precisa ser tratada ainda em potência, para que não venha a desaguar em episódios de violência. As ocorrências do outono de 2013 evidenciam que a sociedade não está pacificada. A mínima provocação pode acender o curto estopim - quando não estiver presente a ausência dele - e deflagrar tragédias. Ninguém consegue explicar como as manifestações pacíficas derivam em tumulto, destruição e caos.

O mundo do trabalho é um dos mais vulneráveis e merece acurada atenção. Onde está o ócio prometido para uma civilização tecnológica em que sobraria tempo adequado ao lazer, ao entretenimento e à fruição do "não ter o que fazer"? Ao contrário, especialistas enxergam nas duas últimas décadas "uma regressão à autêntica barbárie no mundo do trabalho"1. O sociólogo Elísio Estanque, titular docente na Universidade de Coimbra, tem por referencial a situação de seu país. Mas poderia estar falando do Brasil. Aqui também há falta de perspectivas concretas de pleno emprego para a maior parte da juventude. Esta já foi caracterizada por constituir a massa "nem-nem": nem estuda, nem trabalha. Além disso, trabalho na condição de escravo para algumas minorias. Fuga ao campo e subemprego nas periferias urbanas.

O intelectual português estagia na Unicamp e constata a realidade brasileira que considera com sintomas de degradação num nível que ninguém conseguiria imaginar há alguns anos. Detecta individualismo negativo, sem direitos sociais básicos, acúmulo de funções, falta de segurança, alta rotatividade, vigilância escamoteada, ausência de lazer e exaustão. Hoje as pessoas se submetem a um controle maior na...

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