As duas faces da democracia: Reflexões sobre constituição e desobediência civil no contexto doméstico e no sistema internacional
Autor | Nayara F. Macedo de Medeiros |
Páginas | 79-100 |
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AS DUAS FACES DA DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE CONSTITUIÇÃO E DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO CONTEXTO DOMÉSTICO E NO SISTEMA
INTERNACIONAL
Nayara F. Macedo de Medeiros1SubmeƟ do (submiƩ ed): 07 de abril de 2013.
Aceito (accepted): 9 de novembro de 2013.
Resumo: A palavra “democracia” assumiu diversos significados de acordo com o período histórico e nas disƟ ntas sociedades que esƟ veram presentes no decorrer dos séculos. Na atual sociedade ocidental, o termo uniu-se a correntes como o consƟ tucionalismo e o republicanismo, manifestando-se essencialmente no Estado DemocráƟ co de Direito. A democracia conquistou, assim, um papel de destaque na contemporaneidade. No entanto, há diversas formas de enxergar essa expressão, tanto no cenário domésƟ co, quanto no sistema internacional. O objeƟ vo do presente arƟ go é, portanto, analisar em que medida essa expressão concreƟ za as pretensões das teorias que a influenciaram, tais como os mecanismos de contestação dessa ordem pré-estabelecida. Essa análise será feita por meio dos principais conceitos que compõem a teoria democráƟ ca e o retorno à formação da sociedade, através das teorias do Contrato Social, destacando-se a perspecƟ va de John Rawls.
Palavras-chave: democracia, consƟ tuição, desobediência civil
Abstract: The word democracy has assumed many meanings accordingly with the historical period and with the different socieƟ es which were present at the passing centuries. In the currently occidental society, the term was put together with theoreƟ cal perspecƟ ves, such as the consƟ tuƟ onalism and the
1Mestranda e Bacharela em Cência PolíƟ ca pela Universidade de Brasília.
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republicanism, being essenƟ ally present on the “rule of law”. Therefore, the democracy conquered a great role during the Contemporary Age. Nevertheless, there are different ways of seeing this expression, both in domesƟ c poliƟ cs and internaƟ onal scenario. Thus, the purpose of this arƟ cle is to analyse in what extent the word “democracy” realizes the pretensions of theories which originated it, as well as the mechanisms of contenƟ on against the established order. This analysis will be done by a revision of the main concepƟ ons that compose the democraƟ c theories and an overlook about the foundaƟ on of society, as the theories of Social Contract, mainly the one present on the work of John Rawls.
Keywords: democracy, consƟ tuƟ on, civil disobedience.
Introdução:
Winston Churchill disse, certa vez, que a democracia era Ɵ da como o pior governo de todos, exceto por todos aqueles que já foram tentados. Essa frase demonstra a conotação posiƟ va que o vocábulo “democracia” adquiriu na contemporaneidade, associando-se, muitas vezes, ao regime mais cobiçado de governo, o nível mais alto na hierarquia de uma suposta evolução políƟ ca, ou, ao menos, aquele almejado por diferentes cidadãos ao redor do planeta.
No entanto, democracia nem sempre foi sinônimo de boa forma de governo. De fato, a palavra tem assumido diversos significados de acordo com as disƟ ntas sociedades e períodos históricos pelos quais passou a humanidade. O termo apareceu pela primeira vez na Grécia AnƟ ga, com o significado literal de “governo do povo” e, desde então, passou a designar uma forma de governo que, em termos de regras e procedimentos, modificou-se conforme os valores das sociedades nas quais o regime democráƟ co se desenvolveu2.
Enquanto a democracia para os anƟ gos significava um regime de governo direto, em que as questões políƟ cas eram deliberadas através de assembléias3, a democracia para os modernos relacionou-se, em larga medida, com o mecanismo de representação (para os liberais) e a luta por igualdade políƟ ca (Revolução Francesa).
Posteriormente, a teoria democráƟ ca, tal como concebida por auto-res como Dahl e Schumpeter, aliou-se ao pensamento liberal, gerando certos
2BOBBIO (2000).
3Descrições do funcionamento do regime democráƟ co na Grécia AnƟ ga podem ser vistas em: BARKER, Sir Ernest.
Eleições no mundo anƟ go, Diógenes, nº 2, Brasília: Ed. UnB/UNESCO, 1986; e PAIM, Antonio. Fantasias sobre a democracia ateniense. DisputaƟ ones: o direito em revista, Apucarana: FACNOPAR, v. 1, n. 1, p. 151-157, DEZ/2003.
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aparatos políƟ cos em prol da defesa dos direitos e garanƟ as individuais, tais como o Estado DemocráƟ co de Direito.
Assim, tem-se que a forma de governo conhecida como democracia no contexto atual passou a denotar uma democracia “liberal”, devido à influência teórica do liberalismo, do uƟ litarismo e do pluralismo políƟ co4.
De forma semelhante, o Estado DemocráƟ co de Direito, como expressão máxima de organização políƟ ca e jurídica, configura-se em um paradigma da cultura ocidental e se caracteriza, principalmente, pelo controle jurídico do poder políƟ co5.
Um dos elementos fundamentais do Estado DemocráƟ co de Direito é a supremacia da ConsƟ tuição, que pode ser tanto escrita quanto uma compilação de normas e costumes. A existência de uma ConsƟ tuição que paira acima do Estado atenta, portanto, para a idéia de “governo das leis e não dos homens”, refleƟ da em expressões como “Rule of Law”. A concepção de uma ConsƟ tuição também traz a idéia de “interesse público”, que, nesse caso, legiƟ ma e controla o poder exercido pelo soberano – exercício feito em nome do povo, que é o verdadeiro Ɵ tular, ideia essa advinda do pensamento democráƟ co6.
Simultaneamente, o aparato consƟ tucional atua também como um mecanismo de autolimitação, visto que define as regras às quais a sociedade deve se ater7. Assim, no plano domésƟ co, a ConsƟ tuição pode ser vista como resultado de um contrato derivado do acordo entre governantes e governados, em que ambos cedem uma parcela de liberdade em prol de uma associação organizada e segura.
No entanto, esse acordo também seria uma limitação a períodos posteriores, uma vez que comprometeria também as gerações futuras, mesmo que elas não tenham parƟ cipado do momento de formulação do contrato.
Já no plano internacional, as relações entre os agentes carecem de qualquer estrutura centralizada, o que contribui para uma maior liberdade por parte dos atores internacionais – como os Estados – uma vez que não há elemento insƟ tucional análogo à ConsƟ tuição que paire acima da vontade dos Estados e dos indivíduos8.
Entretanto, o caráter de obrigatoriedade e de consenso dos Tratados Internacionais denota a legiƟ midade das relações internacionais sobre o espectro do Direito Internacional Público. Além da importância do contratualismo no que se refere ao contexto de legiƟ midade, as diversas concepções de Contrato
4HEYWOOD (2004); BOBBIO (2000).
5CANOTILHO (1999).
6SUNDFELD (2009); CANOTILHO (1999).
7VIEIRA (1997).
8SOUZA (1999).
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Social e de estado de natureza contribuíram em larga escala para as correntes naturalistas e iluministas que influenciaram o Direito Internacional9.
O presente estudo tem como objeƟ vo trazer uma reflexão introdutória sobre a legiƟ midade e as contradições do estabelecimento da ConsƟ tuição no Estado DemocráƟ co de Direito, contrapondo-o à concepção de Desobediência Civil. Pretende-se, também, iniciar a análise do contexto internacional acerca da relação entre os Estados e o papel dos indivíduos nesse cenário. A intenção é auxiliar aos estudantes das ciências jurídicas e áreas correlatas na compreensão de concepções fundamentais, tal como a definição de jusƟ ça, e incenƟ var o debate.
Tal estudo será feito através de uma revisão bibliográfica dos principais conceitos que permearam a teoria democráƟ ca nos contextos domésƟ co e internacional. Em ambos os casos, parte-se de uma concepção contratualista, ao considerar tanto a ConsƟ tuição quanto os tratados internacionais como espécies de contrato social. A interpretação nesse estudo será feita a luz de trabalhos de autores como Habermas, Weber e John Rawls10, visando à explicação de conceitos básicos trabalhados por esses autores.
O arƟ go será dividido em três partes: I) O Contrato Social, em que é apresentado o arcabouço teórico uƟ lizado na posterior análise; II) A Democracia no Contexto DomésƟ co, em que se pretende analisar o papel da ConsƟ tuição e a desobediência civil como forma legíƟ ma de resistência; III) O Contexto Internacional, em que são expostas as consequências das reflexões anteriores no sistema internacional.
O principal argumento, aqui, é que sem uma parƟ cipação aƟ va da sociedade civil – tanto no contexto domésƟ co por meio da desobediência civil, tanto no contexto internacional através dos diversos protestos que quesƟ onam as organizações internacionais – não é possível o fomento de uma democracia substanƟ va, tanto nas concepções advindas do liberalismo quanto de correntes teóricas mais críƟ cas.
I. As diversas vertentes do contrato social e a questão da legiƟ midade
O termo “contratualismo” denota uma estrutura conceitual que emergiu na Europa entre os primórdios do século XVII e o final do século XVIII. Nesse período, o anƟ go conƟ nente passava por um processo de subsƟ tuição do poder da Igreja pela centralização do governo. Dessa forma, as teorias que se encai-
9HALL (1999).
10Os trabalhos de Jürgen Habermas e Max Weber serão úteis na compreensão acerca da relação entre PolíƟ ca e
Direito, principalmente no que tange a ConsƟ tuição e o Estado DemocráƟ co de Direito, assim como a concepção de Desobediência Civil. Já os escritos de Rawls serão uƟ lizados na adoção de uma teoria neocontratualista e na definição de JusƟ ça Social.
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xam na perspecƟ va conceitual trazida pelo Contrato Social buscavam...
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