A família e suas transformações ao longo do tempo

AutorJuliana Rodrigues de Souza
Páginas21-69

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"Voltar o olhar para o passado, ainda que recente, nos permite avaliar a dificuldade que envolve a proteção da criança e o longo caminho percorrido até a conquista da condição de sujeito de direitos1".

Com essas palavras iniciais, é demonstrada a necessi-dade de se abordar as modificações ocorridas na instituição familiar ao longo dos anos. E, nesse sentido, num primeiro momento, será demonstrado o conceito de família, bem como as transformações ocorridas ao longo do tempo. Para num segundo momento, trazer informações para que possamos compreender como eram vistas as crianças antes e depois da Constituição Federal brasileira de 1988.

1.1. Breves noções históricas sobre a família

A instituição familiar sempre esteve em contínua modificação ao longo da história. O conceito de família vem se

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modificando e se reajustando às novas condições sociais que gradativamente estão sendo apresentadas na vida contemporânea.

Para tanto, para melhor compreender a configuração da família nos dias de hoje faz-se necessário conhecer e entender a sua alteração ao longo dos anos, uma vez que o conceito de família modifica-se continuamente, renovando-se como ponto de referência do indivíduo na sociedade. É indispensável acrescentar, também, que qualquer análise não pode deixar de enfocar o momento histórico e o sistema normativo em vigor2.

É possível afirmar que, ao fazer uma análise do conceito de família, em face das profundas transformações de valores éticos e morais promovidas pelos conflitos operados na estrutura das sociedades modernas, se verificam alterações substanciais3. Dessa forma, observa-se a importância de uma definição de família, pois assim, conseguiremos avaliar as alterações que ocorreram e ocorrem na sociedade de acordo com as influências políticas, culturais, éticas, econômicas e religiosas de cada época.

Convém salientar que é no seio da família que, "o homem estabelece suas primeiras relações, que irão

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marcá-lo para o resto da vida, apreende valores e desenvolve a consciência da sua dignidade [...]"4.

É extremamente necessário compreendermos a evolução histórica do Direito de Família, uma vez que esta precisa ter como base a construção e a aplicação de uma nova cultura jurídica, conforme discorre Maria Cláudia Crespo Brauner5.

E ainda, acerca da problemática que envolve os conflitos familiares, mais especificamente a Alienação Parental, a autora enfatiza que a "necessidade de adaptação das soluções para os descompassos e rupturas enfrentados nestas relações exige uma constante adaptação do Direito interno, na tentativa de compor os conflitos surgidos no cotidiano da vida familiar"6.

Neste sentido, Nitschke expressa que, "falar em família é mergulhar em águas de diferentes e variados significados para as pessoas, dependendo do local onde vivem, de sua

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cultura e, também, de sua orientação religiosa e filosófica, entre outros aspectos"7. A autora tem uma visão extremamente clara, embasada em argumentos bem consistentes acerca do significado desta expressão. Além disso, Arnaldo Rizzardo enriquece o assunto dizendo que "na medida em que evoluem os tempos, o ser humano, de forma geral, altera seus hábitos e se desapega de velhos conceitos e princípios herdados dos antepassados"8.

A sociedade possui grandes instituições que são fundamentais para a sua organização, como a família, a proprie-dade e o Estado. Dentre as instituições, a família representa a mais antiga; no entanto, não podemos registrar, de maneira precisa e exata, a sua origem. Sob o aspecto sociológico, pode-se assegurar que a sua formação é cultural, que deriva de comportamentos, de hábitos e de valores próprios dos membros que compõe o grupo, em um determinado tempo e em um espaço9.

A partir dessa constatação, pode-se afirmar que a palavra família não tem um único sentido, ao contrário, esta expressão varia conforme o tempo e o espaço, na medida em que a sociedade vai se modificando.

Para que os leitores tenham uma visão bem definida do conceito de família, Maria do Rosário Leite Cintra menciona que é o local onde o ser humano em desenvolvimento se

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sente protegido e o lugar onde ele é lançado para a socie-dade e para o universo. E ainda completa dizendo que é na família o lugar apropriado de se realizar uma boa educação, de se aprender o uso adequado da liberdade, e, onde há a iniciação gradativa do mundo do trabalho10.

A família pode ser entendida como uma estruturação psíquica, onde cada um dos seus membros ocupa um lugar e uma função11. Sob essa perspectiva, Paulo Nader argumenta que "a família é uma instituição social, composta por mais de uma pessoa física, que irmanam no propósito de desenvolver, entre si, a solidariedade nos planos assistencial e da convivência ou simplesmente descendem uma da outra ou de um tronco comum"12.

"Ao falarmos de família, entramos num vastíssimo campo de incidência de situações anormalizadas, que progressivamente vão aumentando na medida em que se tornam mais complexas as relações interindividuais"13, ou seja, a concepção de família altera-se, uma vez que as pessoas que nela estão inseridas também mudam.

No que se refere à origem e a evolução histórica das famílias, Orlando Gomes enfatiza que o modelo presente no

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atual ordenamento jurídico foi influenciado de maneira direta pela família romana e canônica. Ao mesmo tempo, a evolução da família sob o aspecto jurídico decorre de modo contundente da antiga sociedade romana14.

Desse modo, para que se possa compreender o significado e a importância da palavra família na atualidade faz-se necessário realizarmos um breve relato histórico quanto à concepção do termo família no direito romano e no direito canônico.

Engels lembra que a ideia da expressão "família" nem sempre foi a mesma dos dias atuais, pois em sua origem, entre os romanos, não se aplicava sequer ao casal de cônjuges e aos seus filhos, mas apenas aos escravos. Famulus significa escravo doméstico e família era o conjunto de escravos pertencentes ao mesmo homem15.

Os dicionários apontam que a palavra família, surge do latim "família", que, por sua vez, se origina de uma expressão da língua dos oscos, povo do norte da península da Itália, "famel", que significa escravo. Em latim, famulus, famuli é fâmulo, escravo16.

Na Roma Antiga, a palavra família significava "o conjunto de empregados de um senhor"; "o pertencimento a uma

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família era determinado mais pela autoridade a que a pessoa estava submetida do que pelos laços de sangue"17. "O termo família não se referia ao casal e seus filhos, ou ao casal e seus parentes, mas ao conjunto de escravos, servos que trabalhavam para a subsistência de parentes que se achavam sob a autoridade do paterfamilias"18.

Contribuindo para o estudo, Rolf Madaleno recorda as transformações ocorridas:

"Ao tempo do Código Civil de 1916, dispunha o art. 233, a unidade de direção do marido, designado para ser chefe da sociedade conjugal e a família se caracterizava como uma entidade eminentemente patriarcal, hierarquizada, matrimonializada e patrimonializada. Pertencia ao esposo, investido na função de cabeça do casal, o poder diretivo de toda família e à mulher e aos filhos competia tão-somente aceitar que deviam obediência ao pater familiae, a bem da paz, da harmonia e da felicidade da família"19.

Portanto, cabe salientar que antigamente a mulher e os filhos eram sujeitos sem direitos, ou seja, eles deveriam

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obedecer às ordens estabelecidas pelo pater famílias e não pelo regramento jurídico geral.

O pai de família desempenhava poder de vida e de morte sobre os filhos, de modo em que podia impor-lhes pena corporal, vendê-los e tirar-lhes a vida, matéria na qual será explicada com maior ênfase no próximo item. Dessa forma, a "mulher nunca adquiria autonomia, pois passava do domínio do pai para o domínio do marido"20, ou seja, "a mulher dedicava-se aos afazeres domésticos e a lei não lhe conferia os mesmos direitos do homem. O marido era considerado o chefe, o administrador e o representante da sociedade conjugal"21.

Nessa perspectiva, é possível mencionar que o chefe da família exercia poder sobre a mulher, sobre todos os filhos e sobre determinado número de escravos, podendo dispor livremente deles, inclusive com o direito de vida e de morte.

"No Direito Romano, assim como no grego, o afeto natural, embora pudesse existir, não era o elo de ligação entre os membros da família"22.

A união dos membros da família antiga era evidenciada por vínculos mais poderosos que o nascimento: a religião doméstica e o culto dos antepassados, segundo os pressupostos de Sílvio de Salvo Venosa. O culto, presente neste grupo, era

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dirigido pelo pater. Quando a mulher se casava, ela abdicava o culto do lar de seu pai e passava a cultuar os deuses e antepassados do marido, a quem prestava as oferendas. Por um extenso período da Antiguidade, a família era um grupo de pessoas que viviam sob o mesmo teto e invocavam os mesmos antepassados23.

Sob essa ótica, o mesmo autor menciona:

"Por essa razão, havia a necessidade de que nunca desaparecesse, sob pena de não mais serem cultuados os antepassados, que cairia em desgraça. Por isso, era sempre necessário que um dos descendentes homem continuasse o culto familiar. [...] Da mesma forma, o celibato era considerado uma desgraça, porque o celibatário colocava em risco a continuidade do culto. Não bastava porém gerar um filho: este deveria ser fruto de um casamento religioso. O filho bastardo ou natural não poderia ser o continuador da religião doméstica"24.

Associam-se estas colocações com as ideias de Paulo Nader: a união entre homem e mulher se formava pelo casamento, e a família estruturava-se pelos descendentes de um ancestral comum, que exercitavam em casa o culto aos...

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