Family, gender and social protection/ Familia, genero e protecao social.

AutorCarloto, Cassia Maria
CargoTexto en portugues - Ensayo

Estado, familia e as relacoes de genero

As formas pelas quais o Estado intervem sobre as familias remonta ao periodo do nascimento do Estado moderno e sao permeadas por multiplas contradicoes e conflitos desde sua genese. Como exemplo, podemos chamar atencao para aqueles modos de intervencao que visam, por meio da legislacao, normatizar as relacoes familiares. E o caso das constituicoes, do codigo civil, das demais leis e politicas que se destinam a organizacao familiar ou refletem nela, como as politicas de controle ou incentivo a natalidade, dentre outras.

Saraceno (1997, p. 212) assinala que, por intervir na esfera da reproducao, que tambem e o espaco de atuacao das familias, o Estado social "redefine as fronteiras entre responsabilidades e direitos publicos e privados, redesenha e em parte condiciona a propria organizacao e divisao do trabalho no interior das familias". Essa influencia pode ser observada no tamanho e na composicao das familias em determinados momentos da historia, bem como nos valores e normas correntes no interior delas mesmas e em sentido ampliado pela sociedade em geral.

A relacao entre familia e Estado e constitutiva da historia das politicas sociais, porem, um momento importante que demarca a interseccao entre as duas esferas e a criacao do seguro social no fim do seculo XIX. Com a instituicao desse seguro podemos observar uma acao institucional que passa a envolver direta e indiretamente familia e Estado. E no ambito familiar que os reflexos da ampliacao dos direitos, como o acesso dos trabalhadores--para alguns--aos sistemas de pensoes e aposentadorias serao sentidos (CAMPOS, 2015).

Pateman (1988, p. 2) reconhece que a relacao desigual entre os sexos foi esquecida da consciencia teorica de grande parte dos autores que discutiram a democracia e os sistemas de Welfare, e por isso propoe analisalos desde uma perspectiva feminista. Fraisse (2003) adverte ainda que "o sonho do homem democratico", no que diz respeito as mulheres, e o de que essas nao sejam nem cidadas, nem trabalhadoras. Ilustra-se, assim, o que se esperava das mulheres, tanto pela visao dos formuladores das politicas, quanto de alguns intelectuais que, mais a frente, se dedicaram aos estudos sobre os estados de bem-estar.

Dessa forma, as mulheres foram submetidas a condicao de dependentes da protecao social que o marido detinha, justamente pelo fato de que o trabalho deste, fora do lar, era valorizado e reconhecido pelos sistemas de seguro, dando a este trabalhador uma maior protecao previdenciaria e trabalhista. O que restava para as mulheres, quando esta via nao era possivel, era a assistencia social.

Ao serem fundadas sobre o chao do patriarcado, as primeiras experiencias de seguros sociais na Europa nao foram estruturadas levando em consideracao as particularidades e a historicidade "dos problemas de genero". Alias, a condicao da mulher na sociedade vigente, a naturalizacao de sua subalternidade por meio da essencializacao biologica, foi utilizada justamente para que estes sistemas ganhassem materialidade e impulsionassem o desenvolvimento e consolidacao dos Welfare States.

Para Saraceno (1995), em primeiro lugar, e preciso reconhecer que a familia, alem de representar o espaco primario de reproducao social, age como reprodutora de desigualdades. Consideramos que essa desigualdade, que se manifesta no interior dos lares com a divisao sexual do trabalho, e peca-chave (mas nao a unica) para compreender a construcao (ou negacao) da cidadania das mulheres.

Saraceno (1995) atesta ainda que os interesses das mulheres sempre foram vinculados a sua posicao no interior das familias. Logo, como a elas fora delegado pelo patriarcado o ambiente domestico, dos cuidados com o lar e com os filhos, este era entao o unico espaco que ela poderia representar e que tambem, de alguma forma, a representava. Seus interesses pessoais, neste sentido, tornavam-se difusos, uma vez que sempre estavam ligados a sua funcao como responsavel por prover o bem-estar do domicilio, do casamento e dos filhos. Por isso, nao haveria justificativa para incorporacao das mulheres enquanto cidadas plenas, por meio de politicas sociais que atendessem as suas demandas individuais, nos estados de bem-estar.

O cuidado com o desenvolvimento dos filhos, justamente pela divisao desigual do trabalho dentro de casa, acaba sendo de responsabilidade praticamente exclusiva da mulher-mae, expropriando dela a possibilidade de pensar e agir para alem destes liames. Ou seja, a capacidade que as mulheres tem de desenvolver-se enquanto ser e genero humano, enquanto alguem que deseja, que raciocina, idealiza e busca realizar-se, e totalmente subtraida, pois o trabalho que elas realizam dentro do lar nao e valorizado. Desconsidera-se que ele exige esforcos como qualquer outro tipo de trabalho, e esforcos que nao se limitam a condicao fisica, mas envolvem fatores emocionais e afetivos. Ha uma inversao, portanto, do carater desta dependencia, bem como um "esquecimento" proposital, fruto de um complexo sistema que o reitera continuamente por meio das relacoes sociais, da dependencia dos homens em relacao as mulheres.

Nos sistemas de protecao social que se baseiam no modelo de homem provedor e mulher dona de casa, o pressuposto e de que os homens precisam que as mulheres estejam nos lares, poupando-os do trabalho domestico, para que eles tenham tempo e disposicao o suficiente para trabalhar em empregos com maiores exigencias, mais bem remunerados e consequentemente com maior possibilidade de acesso aos seus direitos. Para Saraceno (1995), os direitos sociais estao atrelados ao trabalho assalariado passado, presente ou futuro, e quando sao desvinculados das relacoes de trabalho sao, na maioria, precarios, discricionais, de tempo limitado e condicionais.

A despeito das multiplas conjunturas que conformaram os Estados de Bem-Estar Social pelo mundo, um fato e que estes sempre basearam suas politicas em algum modelo definido de familia, que e aquele que consideramos "tradicional", pelo menos no Brasil, ate os nossos dias.

Quando da instauracao do seguro social na Europa, o modelo de familia ideal estava centrado no nuclear burgues, no qual o homem e o provedor, chefe de familia, e a mulher e a dona-de-casa que depende do marido. O proprio relatorio Beveridge (1942), ao dizer que sem o trabalho nao pago realizado pelas mulheres os homens nao conseguiriam trabalhar, o que influenciaria diretamente o desenvolvimento da nacao, confirma as teses de que este modelo de familia, biparental e fundado na heterossexualidade e maternidade compulsoria, sempre foi funcional ao Estado capitalista. Nao e sem razao que a manutencao deste Estado perpassa, sobretudo, pela manutencao deste tipo de familia e de sua moral, ligada aos preceitos catolicos. Nesse sentido, Therborn (2006, p. 278) confirma:

casamento e a familia sao temas caros ao conservadorismo social, centrais a sua concepcao de ordem desejavel. Os direitos individuais, principalmente de mulheres e criancas, sao vistos negativamente, como um colapso ou, pelo menos, como uma seria ameaca a ordem. Para Pateman (1988, p. 27), embora seja necessario situar o papel da mulher nos Estados de Bem-Estar Social mais consolidados, esta questao e "apenas uma parte do todo", pois "o desenvolvimento do estado de bemestar tambem trouxe desafios ao poder patriarcal e ajudou a proporcionar uma base para a cidadania autonoma das mulheres". Muito antes da conquista da cidadania formal, as mulheres ja faziam campanhas para que o Estado funcionasse como provedor de bem-estar para elas e para as criancas. Os Estados de Bem-Estar, segundo a autora (referindo-se ao sistema britanico, australiano e estadunidense), tem sido vistos pelas mulheres como um importante meio de apoio e, nao de forma univoca, como um explorador do trabalho nao pago realizado pelas mesmas. Indica, ainda, que "organizacoes de mulheres e ativistas continuaram as suas atividades politicas em torno de questoes de bem-estar, nao apenas em oposicao ao seu status de dependentes" (PATEMAN, 1988, p. 27).

A retomada da familia no neoliberalismo familista

Atualmente, principalmente...

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