"O fantasma da classe ausente": ensaio sobre as bases sociais do Movimento da Reforma Sanitaria/"The ghost of the absent class:" an essay on the social basis of the Sanitary Reform Movement.

AutorStotz, Eduardo

Nao e correto dizer que a historia passada dos comunistas, e de todos, ja estava predeterminada, assim como nao e verdade dizer que o futuro esta nas maos dos jovens que virao. A "velha toupeira" escavou e continua escavando, mas, como e cega, nao sabe de onde vem e para onde vai, ou se anda em circulos. Quem nao quer ou nao pode confiar na providencia deve fazer o que pode para entender e assim ajudar. (Lucio Magri) Introducao

A tradicao academica determina, no que diz respeito ao conhecimento, uma rigida separacao entre ensino e pesquisa. Dedicado a formacao, o ensino e o dominio da instrucao dos estudantes, informando e explicando conteudos e metodos; deste modo, orientando a profissionalizacao. Nao contribui, portanto, para a criacao do conhecimento, tarefa exclusiva da pesquisa. Contudo, quando o professor sistematiza o conhecimento de um determinado campo cientifico, assinalando disputas, ambiguidades e lacunas existentes, nao esta proximo da pesquisa, em sua fase exploratoria, contribuindo na delimitacao do problema ou objeto de estudo?

E o caso do presente texto, escrito para responder a uma demanda dos alunos de disciplina oferecida no curso de Pos-Graduacao em Saude Publica, em sua edicao de 2018. Durante sessao dedicada a Reforma Sanitaria, a demanda apresentada ao professor responsavel consistiu em explicar as razoes do afastamento do Movimento da Reforma Sanitaria em relacao aos movimentos sociais pari passu com seu desenvolvimento no interior do aparelho de Estado.

A pesquisa bibliografica realizada como parte da resposta a demanda identificou outro texto de mesmo titulo: O fantasma da classe ausente: as tradicoes corporativas do sindicalismo e a crise de legitimacao do SUS, tese de Ronaldo Teodoro dos Santos defendida na UFMG em 2014. A leitura da tese conduziu-nos a perceber que, enquanto este autor fazia uma homenagem, nos identificavamos um problema. Valem aqui alguns esclarecimentos.

O tema que fundamenta o titulo da tese e desenvolvido apenas no capitulo 5--O "fantasma da classe ausente" na formacao da saude publica brasileira. Neste subtitulo, o autor insere uma nota, a seguir reproduzida:

O uso desta expressao e uma forma de homenagear o destacado sanitarista Antonio Sergio da Silva Arouca que, segundo Jairnilson Paim (2008), teria assim compreendido as dificuldades do movimento sanitarista em se articular, organicamente, com as massas populares. Ver PAIM, Jairnilson Silva. Reforma Sanitaria Brasileira: contribuicao para a compreensao e critica. Salvador: EDUFBA; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008. (SANTOS, 2014, p.101). A defesa do Movimento da Reforma Sanitaria da o tom da tese. Quanto ao tema, o autor limita-se a reproduzir o ponto de vista oficial desse movimento, representado por Paim, deixando de lado, alias, a sua fonte original, contida na dissertacao de mestrado de Sarah Escorel (1987). Ainda que cite pontos de vista contrarios ao discurso politico daquele movimento, o faz por meio de outros e mesmo assim em nota de pe de pagina, como e o caso de Amelia Cohn (1992) citada por Francisco Lacaz (1994). Ele sequer faz referencia a polemica entre Sonia Fleury Teixeira e Gastao Wagner de Souza Campos, publicada na Revista Saude em Debate e republicada no livro Reforma Sanitaria: Italia e Brasil (referido, alias, na bibliografia). Nao aborda os debates da VIII Conferencia Nacional de Saude, especialmente sobre estatizacao da saude, que sequer ocupa o espaco de um topico na tese. E assim por diante.

Por outro lado, a alegoria do "fantasma da classe ausente", mais do que simplesmente uma homenagem, torna-se, na tese de Santos (2014), uma quase-hipotese: "Compreende-se que esta alegoria e perfeitamente adequada para discutir o nao-dialogo das teses sanitarias com o mundo sindical" (SANTOS, 2014, p. 114).

A ausencia deste dialogo e o problema real da "classe ausente" no cenario politico dos anos da decada de 1980--no que concerne ao papel do Partido Comunista Brasileiro e de sua vertente "eurocomunista", a qual porta-vozes do Movimento da Reforma Sanitaria como Sonia Fleury estavam vinculadas--somente se tornam compreensiveis a luz do estudo da luta de classes no pais naquela decada. E disso que o nosso texto pretende dar conta.

A ideia do "fantasma da classe ausente"

A discussao sobre a participacao dos movimentos sociais na Reforma Sanitaria brasileira e um dos "nos criticos" da teoria formulada pelos seus proprios intelectuais. Como assinala Amelia Cohn (1989), ao identificar o que caracterizaria esta reforma como expressao de um movimento, surgem alguns "fatos instigantes":

O primeiro diz respeito a terem origem predominante no Executivo as propostas e medidas no sentido dos preceitos reformistas. O segundo exprime-se na dificuldade da extensa literatura a respeito para identificar as forcas politicas que compoem o movimento da Reforma Sanitaria brasileira. (COHN, 1989, p. 129-30). Outro ponto e aquele das tensoes no interior desse movimento (COHN, 1989, p. 131), tensoes que Hesio Cordeiro caracterizou como caminho de "unificacao pela base do sistema" de saude, defendida por ele e por Jose Gomes Temporao, e outro, "pelo alto", seguido por Antonio Sergio Arouca (BRASIL, 2006, p. 77).

Interessa-nos aqui examinar os dois primeiros "fatos instigantes". Antonio Sergio Arouca foi quem apontou a correlacao entre aqueles fatos por meio da alegoria do "fantasma da classe ausente". De acordo com Sarah Escorel (1987), ele teria formulado a ideia do "fantasma da classe ausente" para dar conta de que a Reforma Sanitaria no Brasil careceu de apoio num sujeito politico popular--alias, diferentemente do ocorrido na Italia no "outono quente" de 1969, a partir do que a Reforma Sanitaria naquele pais vinculou-se a emergencia da classe operaria como forca politica.

Vale a citacao integral do texto para se ter o entendimento do dilema que preocupava pelo menos Arouca e, por extensao, Sarah Escorel, a par das dificuldades em expressa-lo:

O movimento...

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