'Farinha pouca, meu pirão primeiro' e a overdose de Direito Financeiro

Dois mil e dezesseis foi um ano veloz, capaz de causar vertigens, e espera-se que efetivamente acabe em uns poucos dias, não se tornando uma espécie de 1968 – o ano que não terminou, título de um excelente livro de Zuenir Ventura.

Desde 2015 comentava-se sobre a dificuldade de os professores de Direito Constitucional e de Processo Penal ministrarem aulas dessas disciplinas, em face do direito criativo que vinha sendo praticado nessas áreas; em 2016 o Direito Financeiro foi acrescido a esse rol, tantas foram as decisões governamentais que criaram novas figuras jurídicas completamente fora da curva dos livros que tratam da matéria.

Dois mil e dezesseis foi o ano em que, pela primeira vez neste país, um presidente da República foi afastado por ter cometido crime de responsabilidade contra o orçamento, o que ficará marcado na história. José Maurício Conti afirmava que o direito financeiro estava sendo levado a sério[1]. Não possuo a mesma certeza. Basta ver o inusitado estado de calamidade financeira autodeclarado pelos estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. O intuito com tal medida, que não existe nos livros acadêmicos, é fugir da Lei de Responsabilidade Fiscal, pois o artigo 65 lhes possibilitou um jeitinho jurídico para dela escapar — olha o direito criativo aí. A norma fala em estado de calamidade e o RJ acresceu às situações jurídicas que envolviam algo imprevisível, como um evento da natureza (enchentes, desabamentos etc.), a palavra financeira — e, pasmem, deu certo!

O uso criativo do direito financeiro transformou má gestão em uma espécie de calamidade pública da natureza, algo externo ao homem. Quem permitiu que as receitas de petróleo (que flutuam ao sabor do mercado internacional) fossem usadas para pagar salários e pensões (gasto rígido e crescente)? Não adiantou aumentar o ICMS e criar taxas, suspensas pelo STF (ADI 5.512, 5.480, 5.481). É óbvio que “calamidade financeira” não é um evento natural, mas clara má-gestão. Tem o dedo humano e não o dedo divino.

O que atingiu os cariocas, gaúchos e mineiros atingirá a todos, uma vez que as dívidas estaduais estão prestes a ser federalizadas, pois o Congresso Nacional aprovou que a renegociação dessas dívidas fosse realizada sem contrapartidas dos Estados. O Poder Executivo está tentando inseri-las em cada renegociação. Acabou a autoridade “da lei”, remanescendo apenas a bilateral, “dos contratos”. E, com isso, deverá ser alterado o início de vigência da limitação do endividamento dos entes subnacionais (artigo 4º da Resolução do Senado 40/01).

Vale registrar que os Estados falidos são ricos, do Sul-Sudeste do Brasil, e não os pobres, do Norte-Nordeste. Trata-se de má gestão financeira — nada de enchente, seca ou históricos desequilíbrios regionais. A calamidade pública financeira são os gestores estaduais atuais e passados, e não algo que os céus possam ser culpados. E a União ainda deu dinheiro ao RJ para as Olimpíadas e terá que manter as estruturas criadas para o evento — a prefeitura repassou o ônus da manutenção, ficando com o bônus das obras.

Não há dúvida que esses estados, dentre outros, encontram-se em deplorável situação financeira, porém, onde estavam os órgãos de controle financeiro que não viram o caos se aproximar? Será que nenhuma responsabilidade lhes será imputada? Observe-se que diversos Estados...

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