A fattispecie 'empresário' no código civil de 2002

AutorCalixto Salomão Filho
Páginas7-15

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Ver Nota1

A primeira e talvez mais importante Acaracterística do Código Civil em matéria de direito da empresa é exatamente ter previsto a figura do empresário, ao mesmo tempo em que revogava o Título I do Código Comercial ("Dos Comerciantes").

Apesar de impactante, essa mudança tem, como se verá, poucos efeitos sobre a disciplina. Essa é a razão para a escolha do título do presente artigo.

1. Surgimento da fattispecie "empresário" e desaparecimento da fattispecie "comerciante"

Evidentemente, a referida substituição não é e nem poderia ser perfeita. A questão que a partir de agora assombrará a doutrina nacional é exatamente a mesma com a que se defrontou a doutrina italiana com o Código Civil unificado de 1942, no qual o Código Civil brasileiro fortemente se inspirou: como dar sistematicidade ao conceito de "empresa".

A primeira questão que se coloca é se é possível simplesmente substituir na fattispecie o conceito de "comerciante" pelo de "empresário", aplicando diretamente a disciplina de direito comercial, que tem no primeiro conceito sua referência principal.

Evidentemente, uma resposta positiva esbarra em problemas de monta. Em primeiro lugar, uma noção de "empresário" centrada, como é, em torno do conceito de "organização" reduz expressivamente o âmbito de aplicação de dispositivos como a Lei Falimentar. Isso porque, enquanto

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a noção de "comerciante" jamais excluiu a atividade organizada, nem todo comerciante tem necessariamente uma organização empresarial à sua disposição. Daí por que em matéria de direito falimentar já se discutiu a aplicação da Lei Falimentar a atividade "em via de organização".2

Mas muito mais importante e grave que isso é o problema decorrente da existência de objetivos diversos por trás de cada conceito. O conceito de "comerciante", por ser formado a partir exclusivamente de características subjetivas (caráter profissional, exercício de atividade econômica) - ao contrário da noção de "empresário", que inclui, ao lado destas, também características objetivas (organização) -, é mais apto a captar situações em que a especificidade da disciplina se justifica exa-tamente em função exclusivamente dessas características subjetivas especiais.

Parece natural, portanto, que enquanto subsistirem esses estatutos especiais seja necessário falar em atividade do empresário comercial e não-comercial, exatamen-te como se faz em outros ordenamentos, tenham eles disciplina comercial diferenciada (Direito Alemão),3 ou não (Direito Italiano).4 O próprio Código Civil brasileiro dá a entender ser esse seu objetivo, ao assegurar, nos arts. 970 e 971, tratamento diferenciado ao empresário rural e ao pequeno empresário - exatamente aquelas categorias consideradas quase unanimemente pela doutrina como de empresários não-comerciais.5

Note-se que afirmar que a substituição é imperfeita não significa que poucas mudanças ocorreram. O que ocorre é que essas mudanças decorrem menos da introdução de uma nova fattispecie - empresário - e mais do desaparecimento de outra - comerciante.

Como visto, a introdução da primeira, além de implicar poucas conseqüências aplicativas, exige o recurso à segunda, para sua correção sistemática.

Já o desaparecimento da disciplina do comerciante do direito positivo é muito mais preocupante. Implica, em primeiro lugar, o desaparecimento do principal - e talvez único - subsistema hetero-integrado de nosso ordenamento jurídico, ou seja, de uma das poucas disciplinas que reconheciam expressamente no costume uma fonte do Direito. É desnecessário comentar o arejamento para influxos e transformações jurídicas e de costumes trazido por essa regra. A substituição por um sistema auto-integrado como o direito privado, que desde a codificação napoleônica se opõe frontalmente à hetero-integração, exatamente para eliminar o pluralismo de fontes e ordenamentos típicos da Idade Média, não é um processo indolor e nem de todo coerente.

No direito civil a analogia é regra in-terpretativa que dá coerência lógica ao sistema. Com efeito, se o sistema legal não reconhece outras manifestações do Direito que não ele mesmo, é preciso criar uma regra de fechamento que permita dar resposta mesmo a situações por ele não previstas. E essa regra é a analogia.

Parece bastante evidente que, sobretudo em matéria comercial (ou empresarial), a analogia não é boa substituta dos costumes. O sistema econômico transmite suas necessidades de transformação primordialmente através da mudança de

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costumes em matéria empresarial. Sendo assim, para manter aberto canal de comunicação entre sistema econômico e Direito é fundamental a manutenção dos costumes como fonte do Direito. É desse último que partem as mudanças em matéria empresarial. Domesticá-los a princípios sociais e distributivos é tarefa do Direito, mas do direito público e do empresarial público,6 e não de uma codificação privatista. Nesta as contribuições da prática e dos costumes empresariais são bem-vindas, como formas de descobrir novas soluções jurídicas. A hetero-integração, e não a auto-integração, é, portanto, elemento fundamental.

É de se esperar que doutrina e jurisprudência mantenham viva a hetero-integração em matéria empresarial, continuando a reconhecer a força interpretativa e construtiva dos costumes no direito da empresa.7

2. Função econômico-jurídica da fattispecie "empresário"

Não parece haver dúvida de que a opção por definir a noção de "empresário", adotada pelo Código Civil, não tem como objetivo criar uma nova fattispecie "empresário", para a atribuição de subje-tividade jurídica a essa nova figura. Para que isso ocorresse seria necessário que, ao lado da criação da fattispecie, a ela se relacionasse uma disciplina completa ligada a essa nova característica. Desse modo, assim como os comerciantes em seus atos e contratos tinham uma disciplina especial, o empresário deveria tê-la. À exceção das regras societárias, essa disciplina abrangente não foi criada.

Na verdade, a função da definição de "empresário" parece ser a de fornecer um novo padrão de raciocínio e de certa distinção de situações jurídicas, isto é, substituir a dicotomia civil-comercial pela dicotomia empresário-não-empresário. Como visto acima, essa substituição não se faz perfeita, sobretudo com relação aos estatutos especiais, não disciplinados pelo Código Civil.

Com relação às matérias disciplinadas pelo Código Civil a definição de "empresário" serve até o momento para diferenciar a sociedade empresária da simples, permitindo a aplicação das respectivas disciplinas.

É, portanto, na vertente societária que se deverá aprofundar a disciplina relativa à empresa.

3. Empresário, organização e atividade

Qualquer tentativa de captação em fórmulas jurídicas do conceito de "empresa" enfrenta sérias dificuldades. A mais séria delas, de que dá conta o Código Civil brasileiro, é, sem dúvida, decorrente do conhecido "polimorfismo" do termo, já destacado por A. Asquini no clássico trabalho Profili delllmpresa. Desse poli-formismo decorre a óbvia dificuldade de escolha de critérios para caracterização da fattispecie.8

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No Direito Brasileiro a opção foi pela concentração no perfil subjetivo. Para sua definição, no entanto, são utilizados elementos dos perfis funcional e institucional. A compatibilização entre eles está longe de ser tarefa fácil.

Em primeiro lugar, é preciso observar que no Direito Brasileiro a utilização da figura do empresário como fattispecie decorre menos de uma história legislativa tendente a reconhecer sua prevalência e mais de um aparente objetivo de afastar por completo a idéia de criação de um ente (a empresa) ao qual pudesse ser reconhecido algum grau de subjetividade jurídica.

Ocorre - e aqui surge o primeiro grave problema de compatibilização - que a utilização do termo "organização" aproxima a fattispecie da concepção institucional (corporativa) da empresa. Mas essa, para existir, deve ser atribuída à empresa, e não ao empresário. É aqui que a quadripartição de Asquini, tão repetida quanto despida de eficácia aplicativa, ganha relevância prática. Exatamente ao compreender que empresário e organização são perfis de uma mesma realidade - a empresa - é que é possível dar coerência ao dispositivo comentado.

A conseqüência de tudo isso é muito relevante: a possibilidade de atribuir à empresa e à sociedade empresária (art. 982) característica institucional terá relevância fundamental para toda a aplicação da disciplina societária.

4. Organização empresarial e institucionalismo

Esse ponto - sem dúvida...

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