Feminismo e mulheres na resistencia a ditadura brasileira de 1964-1985/Feminism and women in the resistance to the Brazilian dictatorship of 1964-1985.

AutorAlves, Maria Elaene Rodrigues
CargoReport

Introdução

Na história da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), as mulheres estiveram presentes em movimentos de contestação às perdas de direitos e às inúmeras violências do Estado, organizando-se em partidos e movimentos sociais, atuando junto às massas. Por sua vez, também se registram ações das que saíram às ruas para pedir a deposição do presidente João Goulart (setembro de 1961 a março de 1964). Neste caso, eram mulheres de classe média, de perfil conservador e temorosas com o que era construído pela grande imprensa e por outras instituições do "perigo comunista", que, juntamente com setores do clero e das elites rurais e urbanas, tiveram papel estratégico na instalação do período ditatorial.

Existia uma estratégia discursiva de generalizar o rótulo comunista para aumentar a gravidade ou a sensação de perigo em relação a certas mudanças sociais que incomodam a opinião conservadora. A discussão desse período se intercala com a história do movimento feminista e sua expressão na sociedade brasileira, um movimento que produz sua reflexão crítica e sua própria teoria. Nessa análise, reconhece-se a existência de várias concepções de feminismos e vertentes teóricas que direcionam as ações das feministas, como as liberais, a teoria queer (queer theory), as estruturalistas, as pós-coloniais, as pós-modernas, o feminismo e marxismo, o feminismo negro, o feminismo comunitário, o eco-feminismo etc. Por sua vez, deve-se pressupor que nem todas as organizações do movimento de mulheres se definem como parte do movimento feminista.

Este artigo é subsidiado pelo marxismo feminista, cuja especificidade está na preocupação de um debate teórico que resgate e elabore categorias voltadas "[...] para a compreensão crítica da subordinação histórica e das desigualdades que marcam a vida das mulheres, como de se instrumentalizar para intervir politicamente na reversão dessa condição" (CISNE, 2012, p. 59). O texto está dividido em duas seções principais. A primeira trata de analisar uma parte da história do feminismo e, na segunda seção, abordaremos a participação política das mulheres no enfrentamento à ditadura brasileira de 1964-1985.

Feminismo e as lutas das mulheres na ditadura brasileira

Compreende-se movimento feminista como de caráter social, uma práxis que é tanto teórica quanto política voltada à superação de realidade, sendo marcada por dominação/exploração de caráter patriarcal-racista-capitalista. Sua pauta propõe a igualdade e a liberdade para mulheres que só pode estar voltada à emancipação humana. Isto implica superar a dicotomia de mundo público como privilégio e domínio masculinos, enquanto se delega às mulheres a esfera privada.

As mulheres, para a sociedade patriarcal, têm sido importantes no processo da reprodução social, cujo formato subjetivo e organizador do cotidiano as transformam nas principais responsáveis pelo trabalho doméstico. Já os homens, por sua vez, são considerados a "mola mestra do processo produtivo" e, portanto, "provedores" econômicos da família (ALVES; VIANA, 2008, p. 18). A divisão sexual do trabalho se constituiu historicamente como longo e crescente processo de apropriação de instrumentos de trabalho pelos homens, em seguida, da propriedade e das riquezas. É processo anterior à sociedade capitalista, embora nesta relação social desenvolva sua forma amadurecida e, consequentemente, consolide a dominação patriarcal.

A despeito da dinâmica histórica, a divisão sexual do trabalho se reproduziu ideologicamente como se fora um estado "natural" e imutável, o que não é. A separação espaço/tempo entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo instala-se com a chegada da ordem social capitalista. Do ponto de vista histórico, é possível observar que a "estruturação atual da divisão sexual do trabalho surgiu simultaneamente ao capitalismo" e que a relação do trabalho assalariado não teria podido se estabelecer na ausência do trabalho doméstico. Mesmo partindo do pressuposto de que houve, anteriores ao capitalismo, outras formas de divisão do trabalho entre homens e mulheres, essa divisão estava marcada por outra relação entre produção e reprodução, pois a divisão que se expressa nesse sistema está diretamente relacionada à formação social capitalista, na qual a força de trabalho é vendida como uma mercadoria e o espaço doméstico passa a ser uma unidade familiar e não mais uma unidade familiar e produtiva (ÁVILA, 2015, p. 19).

Essa divisão entre homens e mulheres na formação capitalista cria várias formas de exploração e subordinação do trabalho doméstico, em geral não o reconhecendo como trabalho, ademais de estar intimamente interligado ao domínio patriarcal. Na tentativa de contribuir com esse debate, as feministas materialistas afirmam que uma das bases de sustentação do modo capitalista de produção está na exploração do trabalho da mulher. Tal processo se dá na esfera produtiva--ocupando cargos desvalorizados e recebendo baixos salários--como também na esfera reprodutiva--materializada na família, através do trabalho doméstico, das tarefas reprodutivas e de cuidado não remuneradas (CISNE, 2012). Essa divisão se apresenta como determinante para a compreensão de como se organizam as hierarquias sociais com predominância dos homens em relação às mulheres, o que se observa nas formas de exploração, opressão e autoridade.

Nestes termos são produzidas relações de subordinação das mulheres a partir de uma moral sexual, a tolerância à violência que as atinge diretamente, dada a sua condição feminina, os limites legais e ideológicos que permitem o controle da sua capacidade reprodutiva. Pateman (1993) estabelece três grandes momentos do debate sobre o patriarcado: o primeiro, forma clássica no século XVII, incorpora todas as relações de poder ao regime patriarcal, inclusive justificando o absolutismo a partir do argumento de que "os reis eram pais e os pais eram reis". Com o desenvolvimento de elaborações teóricas modernas, de 1861 até o século XX, expande-se essa ideia de domínio paterno para a teoria do direito e da obediência, fazendose no modo "fraternal, contratual e estrutural à sociedade civil capitalista" (PATEMAN, 1993, p. 44-45).

O terceiro momento do debate ocorre com o nascimento do movimento feminista organizado, ainda em curso atualmente. Compreendese que o patriarcado está presente em várias sociedades, mas na capitalista/racista torna-se mais complexo porque diferentes concepções ideológicas, culturais e políticas se entrelaçam. Passam a ser observadas não mais apenas nos limites do espaço doméstico, mas também no trabalho, na política e em outros espaços públicos. Com isso, as mulheres sofrem as relações de opressão e de violência que se estendem para além da casa para diferentes espaços públicos, sejam os do ambiente urbano ou rural.

Em situações de violência do Estado, a exemplo das ditaduras na América Latina nas décadas de 1960 a 1980, as mulheres registraram a brutalidade das torturas de seus corpos na forma de estupros e outras violências de caráter sexual. Por sua vez, estudantes presas por suas participações no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP), em 1968, indicaram que as forças policiais mostravam caixas de pílulas apreendidas, sugerindo outros motivos para estarem no evento, tal como no estudo de Ventura (1988, p. 35).

A polícia acreditava que a exibição provaria à opinião pública que as moças tinham ido ao encontro preparadas para algo mais do que discutir as questões estudantis. Portanto, os discursos de militares e outros agentes do governo aliavam aspectos morais à política para dissipar argumentos dos que faziam oposição à ditadura. Em casos como estes, a violência efetuada pelo Estado contra as mulheres se legitimaria não apenas através de uma suposta política de segurança nacional, mas também por meio da violência patriarcal.

No que se refere à especificidade do patriarcado, Saffioti (1992) analisa a abordagem weberiana da categoria, fazendo crítica ao autor por apresentar o patriarcado unicamente como dominação centrada na família. A dominação-exploração do sistema patriarcal se inscreve tanto no espaço familiar quanto na esfera política, sendo intrínseco às relações sociais. Assim, "nem sequer a presença do patriarca é...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT