A Filosofia do Direito de Miguel Reale

AutorJosé Antonio Tobias
Ocupação do AutorDoutor e Livre-Docente em Filosofia. Professor de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito de Alta Floresta
Páginas345-380

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9. 1 Introdução

Muito se tem escrito e muito mais se escreverá sobre Miguel Reale, junto com Farias Brito, no cenário jurídico-filosófico nacional, os dois maiores nomes do pensamento brasileiro. Com a vida dedicada à Filosofia e ao direito, e sobretudo à Filosofia do Direito, disciplina de que foi catedrático na Faculdade de Direito de São Paulo, o mestre paulistano tem extensa produção: 14 (catorze) "Obras Filosóficas" e 9 (nove) "Obras de Filosofia do Direito"422; na página de entrada do Filosofia do Direito, edição de 2002, contamos 59 (cinquenta e nove) obras de Miguel Reale. Dessas vinte e três obras, filosóficas ou de Filosofia do Direito, duas interessam primordialmente ao nosso escrito: a Introdução à Filosofia e a Filosofia do Direito, que mais diretamente desenham a Filosofia do Direito de Miguel Reale.

9. 2 A vida

Miguel Reale nasceu em São Bento do Sapucaí, no Estado de São Paulo, em 1910 e faleceu, em 2006, aos 96 anos, na capital paulista. Bacharelou-se em direito, em 1934, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde se doutourou em direito, assumindo a cadeira de Filosofia do Direito, por concurso, em 1940. Tornou-se reitor da Universidade de São Paulo em 1949 e, nesse cargo, fundou os primeiros Institutos Oficiais de Ensino Superior do Estado de São Paulo, origem das faculdades oficiais do interior paulista e da UNESP-Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho",

Em 1949, fundou o Instituto Brasileiro de Filosofia, do qual foi presidente e editou a Revista Brasileira de Filosofia, com mais de cincoenta anos de publicação. Em 1954, fundou a Sociedade Interamericada de Filosofia, da qual foi duas vezes presidente. Em sua vida, inteiramente dedicada à Filosofia, ao direito e ao ensino superior, recebeu por dez vezes o título de "Doutor Honoris Causa" e por cinco vezes o

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título de "Professor Honoris Causa". Foi membro de 32 (trinta e duas) instituições de renome nacional ou internacional e recebeu 30 (trinta) prêmios e condecorações.

Na política, participou da Ação Integralista Brasileira. Foi Secretário de Justiça do Estado de São Paulo e participou das articulações que levaram à Revolução de 1964. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.

Além de renomado filósofo brasileiro, talvez o maior depois de Farias Brito, Miguel Reale é dono de um estilo preciso, agradável, profundo e castiço quanto a Gramática, lembrando o português de Ruy Barbosa.

9. 3 A filosofia de Miguel Reale
9.3. 1 O que é a Filosofia

O homem, ensina Miguel Reale, por natureza e em qualquer idade e lugar do planeta, procura respostas para as perguntas e os mistérios que a vida e o universo lhe trazem. E isso já é filosofar, diz ele. E assim vai o homem a vida inteira acrescentando-lhe a ele mesmo cada vez mais perguntas para sua filosofia que, por isso, é procura da verdade e não propriamente posse da verdade, distinguindo-se, portanto, do estudo e da ciência das causas primeiras, supremas ou últimas da filosofia de Aristóteles com suas perguntas e muitas vezes com suas respostas que são posses de verdades. A esse respeito, no início de sua Introdução à Filosofia, ao tratar do "objeto da Filosofia", escreve o pensador paulistano de modo claro mas, como muita vez, também de modo impreciso:

Há certa verdade, portanto, quando se diz que a Filosofia é a ciência das causas primeiras ou das razões últimas: trata-se, porém, mais de uma inclinação ou orientação perene para a verdade última, do que a posse da verdade plena423.

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As verdades adquiridas no decorrer da vida, à medida que vão sendo acrescentadas umas às outras, acabam formando "um sistema particular de conhecimento", independente em si mesmo; neste caso, "dizemos que atingimos um princípio, ou um pressuposto"424. E, desta maneira, unindo-se esses princípios, nascidos da inclinação perene para a procura da verdade última, é que nasce, se fortalece e se constitui a Filosofia, assim definida por Miguel Reale:

Quando se afirma que a Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, o que se quer dizer é que a Filosofia pretende elaborar uma redução conceitual progressiva, até atingir juízos com os quais se possa legitimar uma série de outros juízos integrados em um sistema de compreensão total425.

A Filosofia, portanto, é procura e procura permanente, sem nunca acabar; naturalmente é procura de verdades e da verdade total. "Poder-se-ia dizer", conclui Miguel Reale, "que é em nossa procura total da verdade que se manifesta a verdade total".426Por conseguinte, a verdade final e total da Filosofia não é a verdade e nem as verdades, é simplesmente a procura. Isso, aliás, está profunda e plenamente de acordo com a Filosofia do mestre paulista, para quem a Filosofia não procura o ser, o ente, isto é, a verdade mas sim o conhecimento (do ser, do ente). E, dessa maneira, nasce, acrescenta o pensador brasileiro, a universalidade da Filosofia que "está de certa forma mais nos problemas do que nas soluções".

Em consequência dessa definição da Filosofia, que chamaríamos de dinâmica, progressiva e movimentada e não de estática ou de posse, Miguel Reale quando quer falar de definição e de conceito (que são termos e conceitos estáticos e de posse), geralmente não os usa e, em seu lugar, emprega o termo e o conceito de "objeto". Assim sendo, o conceito de Filosofia, ou segundo o linguajar do eminente pensador "o objeto" da Filosofia, parece aproximar-se mais do vir-a-ser, do "progresso"

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do que do ser, do estático, da posse. Distancia-se, por conseguinte, o conceito de Filosofia do mestre paulistano, da noção de "ente enquanto ente" e das quatro causas supremas de Aristóteles, sobretudo da causa formal e material que formam a essência, a natureza, o é, objeto da Filosofia e constituidoras por excelência do imutável, do estático e da posse.

9.3. 2 Aristóteles ou Kant

Não é possível entender-se o conceito de Filosofia de Miguel Reale assim como toda sua Filosofia, toda sua Filosofia do Direito e todo seu pensamento filosófico-jurídico sem conhecer, de um lado, a filosofia de Aristóteles e, de outro lado, a filosofia de Kant.

Expliquemo-nos.

Tudo, em Miguel Reale, quando se trata de Filosofia, enraíza-se no conhecimento (do ser), isto é, na Crítica, na Teoria do Conhecimento, ou Gnoseologia, parte primeira da Metafísica, por ele chamada de Ontognoseologia427.

Geralmente, nos livros de Introdução à Filosofia dos autores assim como nas aulas de Introdução à Filosofia, quando se estuda a Gnoseologia, também chamada de Teoria Geral do Conhecimento ou de Crítica, o assunto central são as quatro principais correntes filosóficas da História da Filosofia e da História da Humanidade: 1.° - o Ceticismo;

  1. - o Idealismo; 3.° - o Materialismo; 4.° - o Realismo Crítico. Mestre Miguel Reale estuda três correntes: o Empirismo, que é o Materialismo; o Racionalismo, equivalente ao Idealismo e o Criticismo, equivalente ao Realismo Crítico. E a última posição, que é da filosofia de Miguel Reale, chamada por nós de Realismo Crítico-Kantiano.

Ao se estudar o Realismo Crítico é onde se vê, de modo nítido e profundo, a posição e a corrente filosófica de Miguel Reale, tendendo

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ele ir para a filosofia idealista do Criticismo Transcendental de Kant, para quem o conhecimento constrói os seres, as coisas e distanciando-se, em silêncio, da filosofia realista do ente enquanto ente de Aristóteles, com sua Teoria da Abstração, com sua Perí Psiquês (Tratado da Alma) e sua Psicologia.

No "Capítulo IX: Do Conhecimento quanto à Essência" de sua Introdução à Filosofia, o pensador brasileiro distingue duas espécies de Realismo: uma chamada por ele de ingênuo, de "realismo tradicional428, visto como a corrente que sustenta tal maneira de ver é aquela que invoca a tradição clássica, de Aristóteles aos nossos dias"429.

Essa tradição clássica de Aristóteles é aquela que define a verdade como "a conformidade da inteligência com o objeto"; quer dizer, primeiro existe o objeto, a coisa e, depois, em segundo lugar, se dá o conhecimento da inteligência que irá conhecê-lo. É o Realismo Crítico430mas não o Realismo Crítico de Miguel Reale que tende para o Idealismo de Kant; mas sim o que vem desde Aristóteles até hoje.

Ora, para Miguel Reale, que também se diz realista, repetindo Kant, o que existe, em primeiro lugar, não é o ser, o objeto, o ente mas sim o conhecimento que, se servindo de algo, constrói, isto é, cria o ser, o objeto, o ente; assim, o conhecimento faz aparecer o objeto, converte o algo em objeto: "Concebe, pois," conclui o mestre paulistano, "o conhecimento como um processo no qual o sujeito cognoscente contribui criadoramente, convertendo ‘algo’ em ‘objeto"431. Por isso, o pensador paulistano chama a esse realismo de Realismo Crítico e nele se inclui enquanto que o científico e tradicional Realismo Crítico432de

Aristóteles é chamado por ele de Realismo ingênuo ou Realismo tradicional.

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Finalmente, um texto confirmador de que o Realismo Crítico de Miguel Reale é sinônimo de Realismo Crítico-Kantiano:

"Quando", diz ele, "o realismo acentua a verificação de seus pressupostos e conclui pela funcionalidade sujeito-objeto, distinguindo as camadas cognoscíveis do real assim como a participação, não apenas ativa, mas criadora do espírito no processo gnoseológico, temos o realismo crítico"433.

9.3. 3 O a priori de Kant e o de Miguel Reale

Nessa altura do estudo da filosofia do pensador paulista...

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