Filosofia jurídica: A transnormatividade das fake news

AutorLuiz Fernando Coelho
CargoProfessor de filosofia do direito no CESUL
Páginas136-151
SELEÇÃO DO EDITOR
136 REVISTA BONIJURIS I ANO 32 I EDIÇÃO 666 I OUT/NOV 2020
Luiz Fernando CoelhoPROFESSOR DE FILOSOFIA DO DIREITO NO CESUL
A TRANSNORMATIVIDADE
DAS FAKE NEWS
Qual perspectiva corresponde à realidade? Aquela que tem potencial
para acabar com trajetórias prossionais ou a que resulta de indiscreta
invasão para procurar “chifre em cabeça de cavalo”?
1. PEQUENO HISTÓRICO DAS FAKE NEWS
Desde que os seres humanos adquiri-
ram capacidade de se comunicar, a
prática de divulgar notícias falsas já
estava entre eles, iniciando pela fala
nos primórdios da civilização e, poste-
riormente, com a utilização de meios de comu-
nicação cada vez mais sofisticados. A represen-
tação linguística mais expressiva dessa prática
tem sido a palavra “boato”, com suas expressões
equivalentes, mas hoje em dia consagrou-se o
termo fake news para aludir às inúmeras for-
mas de mentira veiculadas através da mídia,
com destaque para a internet e redes sociais.
Ambas as expressões conservam uma conota-
ção pejorativa alusiva à afirmação de uma fal-
sidade, mas no boato prevalece a comunicação
oral, enquanto o instrumento preferido para a
difusão das fake news tem sido a escrita ou a
comunicação virtual. Após as campanhas elei-
torais de 2016, nos eua, o emprego preferencial
pela mídia fez com que a expressão inglesa aos
poucos se vulgarizasse.
Ambos os termos estão presentes na história;
todavia, quando um noticiário espalha mexeri-
cos, balelas, maldades, ou atribui veracidade a
fatos inexistentes, a notícia tende a ficar esque-
cida quando a verdade é descoberta. Mas há fal-
sidades que, pelos malecios causados, perma-
necem na memória por um longo período. Eis
alguns exemplos: no ano 64 d.C., a atribuição
aos cristãos da responsabilidade pelo incêndio
de Roma; em 1487, a publicação do livro Malleus
Maleficarum (O martelo das feiticeiras), que
afirmava a tendência das mulheres para a feiti-
çaria e estimulou a “caça às bruxas” na Europa;
no território norte-americano, entre 1692 e 1693,
o julgamento das “bruxas de Salém”, baseado em
fatos imaginários e falsos testemunhos ligados
à bruxaria; na Europa do século 14, a culpa pela
peste negra foi atribuída aos judeus; em 1793,
para o julgamento e condenação à guilhotina
de Luís XVI e Maria Antonieta, foram trazidas
aos respectivos processos acusações repletas
de distorções e maledicências; e last but not le-
ast, em 1903 foi publicado na Rússia o Protocolo
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REVISTA BONIJURIS I ANO 32 I EDIÇÃO 666 I OUT/NOV 2020
Na América Latina, o engodo, a mentira e a ma ledicência alimentaram o
fenômeno psicos social do populismo, quando aspirantes ao poder político
trataram de cooptar seguido res valendo-se de promessas enganosas
dos Sábios de Sião, interpretado como teoria da
conspiração para o domínio do mundo pelos ju-
deus e aproveitado pelos nazistas em sua cam-
panha antijudaica.
No Brasil, durante o império e mesmo antes,
com a vinda de D. João VI, circulavam boatos,
futricas palacianas e mexericos políticos envol-
vendo a família real e cidadãos proeminentes,
especialmente os novos nobres, cujos títulos
haviam sido concedidos pelo imperador. À épo-
ca da segunda guerra mundial, espalharam-se
notícias, nunca comprovadas, da existência de
uma trama comunista para derrubar o governo
de Getúlio Vargas, fator que acarretou a dita-
dura do Estado Novo, de 1937 a 1945. O mesmo
inimigo interno – o comunismo – foi objeto da
propaganda norte-americana durante a guer-
ra fria, que alimentava o falatório contra o co-
munismo ateu, que nos círculos religiosos era
cognominado anticristo. Em contrapartida, a
esquerda política espalhava boatos sobre a co-
biça das grandes empresas estrangeiras, impro-
priamente chamadas trustes, sobre as riquezas
do Brasil, especialmente as da Amazônia. O
embate ideológico precedeu a instauração do
autoritarismo militar em 1964, precipitado por
notícias não confirmadas de complôs em apoio
ao esquerdismo do governo legitimamente ins-
talado e por rebeliões nos quartéis.
2. POPULISMO: O BOM E O MAU
Não só no Brasil, mas também em toda a Améri-
ca Latina, o engodo, a mentira e a maledicência
alimentaram o fenômeno psicossocial do po-
pulismo, quando aspirantes ao poder político
trataram de cooptar seguidores valendo-se de
promessas enganosas e distorção da verdade
dos fatos.
O populismo consiste na apropriação de téc-
nicas publicitárias por lideranças políticas as
mais das vezes comprometidas com oligarquias,
grandes grupos empresariais, instituições ban-
rias e segmentos políticos, ideológicos ou
religiosos, para apoderar-se das estruturas go-
vernamentais do Estado. Para esse objetivo
necessitam vencer as eleições, sendo ipso facto
indispensável o apoio popular, quando não sim-
plesmente se valem da fraude eleitoral a fim de
evitar que a estrutura do Estado caia em mãos
que o sistema tem por indesejáveis. Pela estraté-
gia populista são atraídos e cooptados cidadãos
mais inclinados a ganhar dinheiro para si, seus
familiares, amigos, correligionários e bajulado-
res, do que a lutar por nobres ideais; é a síntese
Guilherme Scarpim

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