Para que fim e de que forma criticar o Estado?/For what purpose and how to criticize the State?

AutorDemirovic, Alex
CargoReport

A discussao materialista sobre o Estado moderno capitalista, considerado como uma das mais poderosas formas do exercicio da dominacao sobre os homens, se poe ha tempos em face da questao: o Estado e, afinal, um objeto inteligivel? Ou ele nao e talvez apenas um artefato ideologico e, portanto, somente objeto da critica? Essa questao resulta da analise teorica de Karl Marx: a teoria do modo de producao capitalista se esgota na analise dos processos economicos materiais constataveis confiavelmente ao modo das ciencias naturais, atraves dos quais tambem os processos nas superestruturas sao, em grande medida, determinados? Ou essa teoria tem, alem disso, a tarefa de determinar a forma do Estado, ou seja, a legalidade autonoma da esfera politica, como Marx mesmo sugere? (1) Qual seria o objeto de uma teoria do Estado? Se o Estado e objeto de uma teoria cientifica, como pode essa teoria se vincular a uma critica do Estado? Pode um objeto cientifico ser caracterizado por um indice temporal especifico, ou sao objetos cientificos apenas aqueles de validade universal, ou seja, aqueles que valem para todos os homens em todos os tempos? Mas mesmo a ciencia natural nao tem a ver com fenomenos 'historicos', isto e, com a origem, o desenvolvimento e o perecimento de especies, a formacao do cosmos, de sistemas solares ou planetas e o seu desaparecimento? E, nessa medida, a sua pretensao de universalidade nao deve levar em consideracao a dimensao temporal do objeto investigado, ainda que em outra ordem de grandeza? Formulada a questao de outro modo: a teoria do Estado pressupoe que ele sempre existiu e existira? Ou nao deve a teoria ser ao mesmo tempo critica, no sentido de Max Horkheimer: um "juizo existencial" sobre o Estado, que, ao lado da visada teorica, tambem contem a determinacao da historicidade do objeto do conhecimento, que surge de uma determinada forma, tem sua relevancia social e em algum momento perde sua necessidade racional? "A sociedade que reorganiza a producao com base na associacao livre e igual de produtores desloca toda a maquina estatal para onde ela ha entao de pertencer: ao museu de antiguidades, ao lado da roda de fiar e do machado de bronze". (2) Se Engels fala do Estado como uma maquina, de forma alguma o diz no sentido de um mecanismo neutro, mas sim de um artefato criado pelo homem, que e apropriado para fins especificos. Trata-se de uma "maquina essencialmente capitalista, Estado dos capitalistas, o capitalista total ideal." (3)

  1. A compreensao burguesa moderna do Estado

    Quero comecar com o ora citado problema da dimensao temporal do Estado: ele e entendido pelas teorias modernas burguesas como uma forma de organizacao social que nao foi instituida por Deus, mas pelos cidadaos - mais precisamente: pelos homens de posses, chefes de familia. Desde Hobbes se levanta a pretensao de fundamentar cientificamente o Estado e compreender sua forma de acao. 'Cientificamente' significa, nesse contexto, reconhecer seus fundamentos nas leis da natureza e possibilitar, dessa maneira, que ele, a partir desse momento, possa existir eternamente - sabendo-se que ele pode ser feito por homens e, portanto, pode tambem ser por eles destruido. Hobbes vincula ambos os aspectos quando fala do Estado como um Deus mortal, um homem artificial. No entanto, para ele e certo que o Estado e um objeto determinavel cientificamente de forma precisa. Se for compreendido cientificamente de forma correta e tratado pelos dirigentes estatais de acordo com esse ponto de vista cientifico, entao o Estado - compreendido por Hobbes como sede do poder - permanecera existindo por toda a eternidade. Diferentemente do caso dos dados da natureza, trata-se, no caso da formacao e conservacao do Estado, de um esforco dos homens. No entanto, a partir do momento em que os principios sao conhecidos, seria possivel compreender o Estado como uma instituicao dada pela natureza, que reclama, de dentro para fora, determinadas acoes e - caso seja correspondido - segue existindo, como a propria natureza, segundo leis eternas. Ja das primeiras fundamentacoes burguesas modernas vem, portanto, um elemento de transitoriedade para a teoria do Estado. Pois o Estado nao e dado pela natureza ou por Deus - se assim fosse, praticamente nao seria preciso oferecer uma fundamentacao para o carater necessario do Estado que viesse junto com o seu conhecimento cientifico. O Estado e uma obra dos homens que procuram erigir e perpetuar um aparato do poder e da lei para a protecao do individualismo possessivo. Mas, uma vez que e feito pelos homens, surge sempre novamente a questao se eles compreendem a sua necessidade. Essa compreensao deve ser produzida e conservada. E preciso permanente esforco e atividade para manter essa 'eternidade'. Hobbes invoca a razao humana - se os homens alcancassem a compreensao da necessidade eterna, nao mais agiriam contra a natureza - mas ele era inteligente o suficiente para reconhecer que tambem o que e racional pode estar em disputa e, por isso, deve ser estabelecido pelo soberano. Apenas assim o Estado pode impedir que a sua existencia seja posta em duvida em nome da razao. Com isso, todavia, esta tanto mais posto o germe da disputa sobre o que e a razao e sobre o que e legitimo na sociedade. Os interesses nao se deixariam acalmar com a repreensao a sua irracionalidade. Pois se poe em questao quem define a razao e o que vale como racional. Segundo Hobbes, o poder de definicao fica com o soberano, mas quando se trata da disputa sobre os principios da razao, tambem a soberania e o Estado ficam a disposicao de maneira imediata. No entanto, sua teoria e fragil. Na logica da conservacao do poder, deve-se impedir sistematicamente que se chegue a esse tipo de disputa. Uma vez que isso nao e possivel em sociedades de classes, nas teorias que vieram depois de Hobbes uma esfera de disputa seria distinguida de uma esfera de vinculacao universal.

    Segundo a compreensao moderna, o Estado e a organizacao e o representante do interesse geral. Na esfera da sociedade civil burguesa, os individuos perseguem seus interesses e finalidades particulares. Isso os forca a provocarem danos mutuos e a entrarem em conflito uns com os outros. Frente a isso, o Estado corporifica o que e comum a todos: a vontade geral, que deve partir de todos para ser aplicavel a todos. Essa universalidade do Estado visa substancialmente, portanto, ao que e comum a todos. A finalidade do Estado seria o bem comum. "Pois, se a oposicao de interesses particulares tornou necessario o estabelecimento das sociedades, e o acordo desses mesmos interesses que o tornou possivel. E o que ha de comum nesses distintos interesses que forma o laco social, e se nao houvesse um ponto no qual todos os interesses entrassem em acordo, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, e unicamente sobre esse interesse comum que a sociedade deve ser governada" (4). No bem comum, nao se trata dos individuos avulsos e suas particularidades; nao deve haver diferencas neste nivel. A universalidade e definida abstratamente. Ela abre o espaco de uma igual liberdade e da livre disposicao sobre sua propriedade para todos os individuos. No centro de toda justificacao e explicacao do Estado esta a protecao da propriedade, a liberdade de decidir por vontade propria sobre ela, assim como a exclusao dos nao proprietarios de seu gozo. A esfera de igual liberdade de cada individuo e tanto limitada quanto protegida pelas leis gerais. Essas leis sao aprovadas em nome de todos e valem para todos, sem considerar pessoas concretas. (5)

  2. Critica do Estado como critica da ideologia.

    Ha uma longa tradicao rousseauniana no movimento socialista e radical-democratico. Ela e caracterizada pelo fato de que os atores do movimento assumem para si a pretensao de representar exatamente essa vontade geral. Eles representam o todo do interesse da sociedade, portado por aqueles que, por meio de seu trabalho, se ocupam da subsistencia de todos e assim garantem a existencia continuada da sociedade. "Quem suporta esses trabalhos? O Terceiro Estado." (6) O momento rousseauniano do bem comum pode tambem vir a valer em outras questoes aparentemente ultimas: a preservacao da humanidade em face do suicidio atomico ou a renuncia a um processo de furtiva autodestruicao ecologica dos fundamentos vitais humanos. Trata-se da pretensao de ser representante de um bem comum do todo em face de interesses particulares. A diminuta minoria daqueles que perseguem interesses particulares (ociosidade, superexploracao da natureza, imposicao violenta dos proprios interesses) e aquela que tem o dominio porque impoe seu interesse particular. O argumento consiste, portanto, na inversao do raciocinio rousseauniano e na demonstracao de que o Estado e o Estado de apenas um grupo particular de pessoas. A pretensao de ser universal, enquanto se trata, no entanto, apenas do interesse de particulares, e concebida como ideologia. Por ideologia se compreende a ilusao e inversao das relacoes reais, que se firmam sobre nos como um poder objetivo. "E exatamente a partir dessa contradicao entre o interesse particular e o comunitario e que o interesse comunitario assume, como Estado, uma forma autonoma, separada dos reais interesses individuais ou gerais, e ao mesmo tempo como coletividade ilusoria, mas sempre sobre a base real (...) Disso se segue que todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc., nao sao senao formas ilusorias nas quais sao conduzidas as verdadeiras lutas das distintas classes entre si." (7) Da-se assim a entender que as lutas no interior do Estado devem ser concebidas como ilusorias, e que, enquanto tais, nao devem de modo algum ser levadas a serio. Podem entao contar como manobras fraudulentas, como tentativas de agir como se se tratasse de discussoes publicas sobre estados de coisas e decisoes reais, de questoes que dizem respeito a universalidade -enquanto, no entanto, o...

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