A finalidade extrafiscal do tributo e as políticas públicas no Brasil

AutorDaniel Cavalcante Silva
Páginas98-122

Daniel Cavalcante Silva. Advogado e Diretor-Executivo do escritório MBSC Advogados; especialista (MBA) em Direito e Política Tributária pela FGV - Núcleo Brasília; Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); Membro honorário da Associação Internacional dos Jovens Advogados (AIJA) e membro honorário da Associação Internacional dos Advogados (AIA); Membro do Grupo de Pesquisa em Finanças Públicas no Estado Contemporâneo. E-mail: daniel@mbsc.com.br ou danielcasi@uol.com.br

Page 98

1 Introdução

O presente estudo visa à realização de uma análise sistemática sobre a utilização da finalidade extrafiscal da norma tributária como instrumento de implementação de políticas públicas no Brasil. Ao estudar a política pública implementada por intermédio da finalidade extrafiscal da norma tributária, o presente trabalho visa afastar a falsa noção de ser a extrafiscalidade algo meramente ocasional ou algo que seja parte secundária do fenômeno do tributo. Como é cediço, diversamente da imposição tradicional (tributação fiscal), que visa exclusivamente à arrecadação de recursos financeiros (fiscais) para promover o custeio dos serviços públicos, a denominada tributação extrafiscal é aquela orientada para fins outros que não a captação de recursos para o erário. Dessa forma, inserem-se como objetivos da extrafiscalidade: a redistribuição da renda e da terra, a defesa da economia nacional, a orientação dos investimentos para setores produtivos ou mais adequados ao interesse público, a promoção do desenvolvimento regional ou setorial e, sobretudo, como mecanismo de implementação de políticas públicas.

Dentro dessa perspectiva, observa-se que a implementação de políticas públicas por intermédio do tributo, subretudo em face da sua finalidade extrafiscal, tem a propriedade de corrigir externalidades, positivas e negativas. Nesse sentido, a tributação, como mecanismo de implementação de políticas públicas, pode ter como propósito, por exemplo, incentivar a geração de empregos ou ser utilizada como instrumento para viabilizar o ingresso de estudantes carentes ao ensino superior.

Na verdade, a finalidade extrafiscal da norma tributária, de acordo com os preceitos doutrinários e normativos, passa a ser um arranjo institucional legítimo na formulação, mecanização e implementação para que uma política pública seja viável. EssaPage 99 abordagem, situada no Sistema Tributário Brasileiro a partir dos objetivos extrafiscais dos tributos e seus valores jurídico-sociais implícitos e explícitos na Carta Magna, tem por intuito fornecer subsídio para que o formulador de políticas públicas possa, em razão da falta ou a incipiência de recursos financeiros, conceber o desenho institucional de uma política pública.

A análise em epígrafe traz elementos conceituais e fundamentos constitucionais para a extrafiscalidade da norma tributária, sobretudo como fundamento para que a implementação de políticas públicas possa se sobressair quando eventualmente existirem dúvidas quanto a sua legitimidade.

2 A finalidade extrafiscal da norma tributária como mecanismo de implementação de políticas públicas

Para que as práticas e os objetivos sumariados constitucionalmente sejam implementados, as ciências que se ocupam das respectivas áreas pressupõem a capacidade do Estado tributar, isto é, exercer ingerência sobre a esfera dos indivíduos. Ao traduzir esse fenômeno em linguagem do Direito, é necessário sustentar um fundamento jurídico que permita ao Estado tributar, afastando os interesses individuais contrários à incidência tributária. Revela-se, desse modo, outra faceta do corolário da supremacia do interesse público sobre o interesse do particular no Direito Tributário.

Nesse sentido, a atividade financeira do Estado passou a ter uma natureza nitidamente extrafiscal, sendo utilizada não apenas para fins de natureza fiscal, mas também política, econômica e social, desde o momento em que este Estado tornou-se um agente interventor do desenvolvimento e do bem-estar social, deixando de ser, simplesmente, um mediador distanciado dos debates sociais.

Há muito vem se discutindo os institutos da fiscalidade, da extrafiscalidade e da parafiscalidade como critérios finalísticos dos tributos. Entretanto, até o presente momento não se chegou a nenhum denominador comum no que concerne às suas respectivas definições e valores finalísticos que o legislador desejou imprimir na lei tributária. Ademais, poucas são as referências doutrinárias no direito positivo que tratam o tema substancialmente. Em restrição à temática, aborda-se apenas a finalidade extrafiscal do tributo.

A atividade financeira que o Estado exerce com o intuito de ordenar as relações sociais e econômicas interferindo, por exemplo, no mercado, é denominada como atividade extrafiscal. Com efeito, essa atuação extrafiscal do Estado não visa à obtenção de recursos para o erário público, mas apenas à atuação sobre o contexto econômico, alterando o cenário social, através, por exemplo, da tributação em gastos seletivos ou a sua retenção. Como sePage 100 sabe, as exações fiscais são receitas derivadas, arrecadadas pelo Estado, para financiar a despesa pública. De acordo com Luciano Amaro1, a distinção entre tributos com finalidade fiscal e tributos com finalidade extrafiscal reside, exatamente, “no objetivo visado pela lei de incidência”.

Nesse sentido, Misabel Derzi, em nota de atualização do livro de Aliomar Baleeiro, preleciona que o tributo é extrafiscal quando não almeja prioritariamente prover o Estado dos meios financeiros adequados a seu custeio, mas, antes, visa a ordenar a propriedade de acordo com a sua função social ou a intervir dados conjunturais (injetando ou absorvendo a moeda em circulação) ou estruturais da economia. É cediço, no entanto, que o Estado tributa com vistas a auferir receitas e, assim, a supremacia do interesse público consubstancia o princípio da fiscalidade. Quando se apreciam objetivos outros, que se afastam da pura arrecadação, apresenta-se a extrafiscalidade. “Eis a extrafiscalidade como princípio, decorrente da supremacia do interesse público, que fundamenta, juridicamente, a tributação com fins diversos do puramente arrecadatório.”2

Portanto, a extrafiscalidade caracteriza-se pelo exercício da cobrança para atender a outros interesses, que não os de mera arrecadação de recursos financeiros. O interesse geralmente manifestado com a extrafiscalidade é o de correção de situações sociais ou econômicas anômalas. Segundo Hugo de Brito Machado, “o tributo é extrafiscal quando seu objetivo principal é a interferência no domínio econômico, para buscar um efeito diverso da simples arrecadação de recursos financeiros”3. Endossa ainda essa posição Paulo de Barros Carvalho, ao afirmar que “a forma de manejar elementos jurídicos usados na configuração dos tributos, perseguindo objetivos alheios aos meramente arrecadatórias, dá-se o nome de extrafiscalidade”4.

De acordo com tais entendimentos, pode-se inferir que a extrafiscalidade constitui-se na aplicação de um modelo jurídico-tributário para a consecução de objetivos que preponderam sobre os fins simplesmente arrecadatórios de recursos financeiros para o Estado. O valor finalístico da extrafiscalidade que o legislador incute na lei tributária, portanto, deve atender às necessidades na condução da economia ou correção de situações sociais indesejadas ou mesmo possibilidade de fomento a certas atividades ou ramo de atividades de acordo com os preceitos constitucionais.

Page 101

Nesse diapasão, quando o legislador institui uma lei de cunho extrafiscal, enceta providências no sentido de prestigiar algumas situações econômico-sociais. Assim, no caso da educação superior, pode-se verificar a preocupação estatal na consecução de valores sociais, conforme preconiza o art. 6º da Carta Magna5. Deve-se ressaltar, além disso, o direito à educação como fundamento prestacional do Estado6. Assim, por exemplo, quando o Imposto Territorial Rural (ITR) busca atender, em primeiro plano, à finalidade de ordem social e econômica e não o incremento da receita, ao fazer incidir a exação de maneira mais onerosa, no caso dos imóveis inexplorados ou de baixa produtividade.

De acordo com a finalidade imediata supra referida, a tendência moderna do cunho extrafiscal da legislação apóia-se em orientar os indivíduos no interesse coletivo, visando organizar a vida em termos de civilidade e nivelação dos tipos e modos de viver. A priori, para fundamentar qualquer teoria social aplicada, é necessário analisar a importância do princípio do bem comum e do interesse público, aspecto no qual incide a finalidade extrafiscal da lei. Modernamente, toda atividade legislativa tem se orientado para esse objetivo, que não é um objetivo meramente formal ou demasiadamente genérico e teórico, sem conteúdo determinado, mas um objetivo claro, decorrente da natureza prática das coisas em relação com o convívio social.

O conceito de bem comum incide na eterna dialética do interesse individual e o interesse coletivo. Ao singularizar o conceito de bem comum, poder-se-ia dizer que seria o bem particular de cada indivíduo, como ente de um todo social. Mas se, ao contrário, o conceito de bem comum for ampliado, observar-se-ia que o fim de cada indivíduo seria o fim do todo. Na realidade, ambos os conceitos se complementam, pois o bem da sociedade é o bem do próprio indivíduo que a compõe.

A atribuição de promover o bem...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT